domingo, 31 de janeiro de 2010

trovas do vento que passa

procuro um ponto minúsculo, uma saliência na linha dos passos. estás de pé no meio do corredor. interrompes a ladaínha. és uma evidência mas ainda assim contornável, ainda assim contornável.percorro a linha até aí chegar , volto atrás, invento estratégias para depois entregar ao impulso, se não resultar espero. se não resultar esperar talvez resulte desesperar, se não houver só contrários, talvez um limbo ou uma amálgama um sítio concavo, uma raíz onde possa pernoitar apenas enquanto a lua incha e desincha penso no dia mas mal começo a pensar é já de noite. se não houvesse contrários então o pensamento propunha um divórcio litigioso à realidade, por isso o melhor é escrever, adiar, ou comprar bilhetes para o circo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

leia-se

Hoje descobri qualquer coisa importante, tardio, mas perto dos 50 dou por mim a espantar-me, é bonito, é inocente e ternurento. Foi de novo a experiência directa que me tirou as ilusões. Fui visitar as instalações da Leya, a nova mega editora que assimilou a Caminho, a D.Quixote, a Asa e outras mais pequenas. O edifício é branco, rigorosamente rectangular, amplo, clean, corredores dão para portas em vidro onde surgem pessoas ao computador em pequenos aquários oxigenados e secos. a semelhança com um hospital sem doentes é o melhor dos elogíos. Então por ali, enfeitiçada por livros desde cedo, pensei, pensava, a sonhar acordada, que o lugar onde se publicavam os livros era desarrumado, empoeirado, com pilhas de livros por todo o lado e gente a fumar cigarros e a discutir, era assim que o via. o ofício era-me deslumbrante e quis pertencer-lhe de alma e coração. desenterrei esse desejo, pu-lo a voar, minha escola, meus putos, frenesim, gente, descobri assim no meio do refrigério que adoro dar aulas.

domingo, 24 de janeiro de 2010

empatia

estou preguiçosa para a escrita e deixo aqui o espaço sem cultivo, a crescer em erva daninha. vou plantar aqui umas ideias se não me der antes para a parvoíce porque quando vem o sol, segurem-me porque a vontade de me atirar para cima da areia a fixar o céu e esquecer as montanhas de papelada para organizar e tarefas e funções e fazeres é incontrolável. mas há fazeres e fazeres, são importantes os fazeres mas não mais importantes que os seres e os sentires, baixo a guarda à eficiência, com o sol permito que me apelidem de adoradora, adoradora do sol e daí à negligência vai um pulinho distraído. chamo-lhe empatia, nasci com uma dose superior de empatia, não é coisa de empata é mesmo a virtude de me transformar por mor da circunstância ou da pessoa, da ambiência ou da energia, como queiram, sorvo e incorporo num movimento além da consciência. não sei bem se é virtude ou defeito será o que quiserem mas é certamente aptidão para compreender intuitivamente sem ser preciso o esforço mental. sendo assim o ser dotado de empatia terá facilidade em colocar-se no lugar do outro, em ser outro, em criar universos imaginários a partir de pequenas amostras de sentimento ou de acontecimento. entrar numa casa estranha e perceber imediatamente o que ali se passa, olhar para alguém e sentir se está alegre ou triste, questionador ou expectante. este pequeno dom dá-me confiança. é isso, confiança, concluo então não haver virtude ou defeito por si só, mas o excesso ou carência com que usamos a qualidade. gosto de pessoas com empatia, são-me familiares e de trato fácil, gosto do trato fácil, essa coisa de não se levar a sério, de perceber as costas e o rosto de tudo quanto se mexe e fala, porque na verdade o rosto na claridade revela a sombra das costas. revela sim então, deixemo-nos de fingimentos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

deixa chover

No filme da Agnés Jaoui, "Deixa Chover" não se passa nada, a acção central sofre desvios por causa do estado de espírito, das circunstâncias e das personalidades, quem comanda são as pessoas, e estas estão também presas numa espécie de curvatura que corre ao arrepio das suas intenções, uma espécie de rio subterrâneo, acaso mais passado, mais presente mais ausência. Nada se passa como cada um quer e todas essas contrariedades acabam por conduzir a um retrato humano comovente e cómico. Há muito que não ria assim, daquele modo pensado, não óbvio, irresistível sempre que nos vem à lembrança o gesto, a reacção, a expressão. Ainda agora me estou a rir com aquilo. levava grandes expectativas, adorei os filmes anteriores "O gosto dos outros" e o "Olhem para mim" acho o Bacri fabuloso e pronto o cinema francês no que tem de melhor: a atenção ao quotidiano, ao irrisório.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Rainer maria Rilke em Cartas a um Jovem Poeta escreve:


"Sabemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil não nos deve abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil, razão mais forte para a desejar. Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?). O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro."




É preciso não esquecer os poetas, porque nos trazem a antiga sabedoria. Sem exigir nada convocam as musas adormecidas, as apagadas coordenadas, por momentos perdidas no lodo áspero das coisas pequenas. Fazem-no sem uma réstia de ressentimento, ou de orgulho, numa incandescência breve de revelação.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

sismo

hoje é um dia infeliz, um dia onde compreendemos que a globalização é uma galinha manca , um enredo, uma ficção de cenário de papel. o Haiti é uma colónia de férias do Ocidente e neste momento lá por dentro das pedras, está gente a sufocar, gente são pessoas mortas, em catadupa, aos milhares. Como é possível num mundo tecnológico com telemóveis capazes de comunicar com o Haiti em fracções de segundo, num mundo onde dezenas de satélites permanecem a girar incansáveis à roda da terra para captar esta taquicárdia de informações tolas, não haja um satélite, uma sonda, um mapa, uma amostra, que possa prever uma catástrofe destas. Como? Que raio de ciência é esta? A ciência de quê? Para quem? Geógrafos? Sismólogos? Geólogos? Para que vos quero.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

na sala de espera da urgência do hospital há agora um quadro electrónico limpo, moderno ,informado no tempo de espera das várias especialidades. em psiquiatria é o tempo aproximado de 1.20h. Uma mulher à minha frente de cabelo colado com gel e fato de treino fala à enfermeira que se sente cansada e pesada, que não sabe bem mas está desmotivada e sem forças. A enfermeira dá-lhe uma bracelete amarela, de coisa urgente. os carros chapinham lá fora na modorra da chuva, chegam, partem, deixam gente, mais adiante um bosque denso,a mulher senta-se e espera. não é um tempo desperdiçado sinto no olhar dela, é um tempo de esperança, de alguém para lhe aliviar o cansaço. este Inverno custa e dentro do Inverno, bem lá dentro, mal se ouve, crescem vozes.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

dia feliz




Hoje é um dia feliz,mesmo o mais empedernido não pode deixar de sentir uma emoção profunda e uma renovada fé nos homens e mulheres que nos representam,
Hoje foi o dia da vitória do bom-senso, da generosidade e da justiça. A lei do casamento homossexual foi aprovada, uma inegável tranquilidade para muitas pessoas que se amam e desejam que a sociedade o reconheça.
e o acordo entre os sindicatos e o ministério da educação sobre o estatuto e progressão dos professores. Tchim! Tchim! BRINDO A ISSO!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Chardin, Morangos

com a idade vamos mudando os gostos, alguns, estou certa, porque outros permanecem, mas muitos deixam de nos apoquentar, pois para quem se vê em conflitos até por ter alguns gostos, nesse campo premeio aqueles para quem todas as matérias desejantes têm um je ne sais pas quoi de amargo dada a sua condição volitiva, retirada da pacatez de ser sem nada desejar, sonho etéreo irmão gémeo desse outro arrepiado que nada contenta e nada satisfaz, para esses mudar de gostos parece ser somente entregar-se a mais uma sensação de que o tempo é um grande falseador e um grande mágico. nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. transforma-se o amador na coisa amada e acontece-lhe saber que nessa sua convulsão não está só pois que outros também assim se transformaram.

domingo, 3 de janeiro de 2010

2010

fui a Cádiz sem saber nada, enevoada de espírito. pretendia desanuviar e nada melhor que rumar on sea direction. pois nem pensei muito, rumei. trovoadas e quedas de água puseram à prova os pneus e a atenção. as estradas mostravam-se solitárias, só os doidos se aventuram com este tempo! fazíamos contas de somar e dividir, ouvíamos músicas na rádio do carro, sonhávamos com o Sol às portas do Mediterrâneo, umas quantas abertas que não existiram. certo é que Cádiz surpreendeu entre nuvens e ondas, catedrais e ruelas, antigo e cruel, daquela crueldade das coisas paradas que já tudo viram da crueldade dos homens. não quis saber do manual de história, ia de nariz no ar, de sensação em sensação e não são as palavras aqui, os olhos mais, os ângulos, as cores, os vestígios e talvez a imaginação. Com aquele mar como pudemos partir em tão frágeis caravelas? que bicho nos mordia os calcanhares? o mesmo me levou a Cádiz, (não me julguem os heróis, antes os homens e as mulheres vulgares em tempos de cólera mansa) o mesmo. o bicho da inquietação, da insatisfação e da coragem de vencer os medos. só quem vive perto do mar o sabe, ele habita na espuma daquelas ondas.