domingo, 30 de maio de 2010

formas aladas

Marc Ferrez

"e tu ,deixa-te estar sentado na cercadura do infinito e limita-te a olhar o meu corpo aberto sobre o mar revolto"
esta frase persegue-me, na quarta feira enquanto andava à procura de um livro no quarto às escuras, assaltou-me , de repente, e depois repete-se com pequenas variações, já não sei se começa com tu, ou se o tu entra depois, nos sonhos vejo nitidamente a cercadura do infinito e enrolam-se as imagens com as frases. já tenho dúvidas sobre a sua origem, para a tornar real disse-a em voz alta a alguém que foi peremptória: Ah, isso é do Ricardo Reis! do Ricardo Reis? ao princípio tinha a certeza de ter sido eu a produzi-la, até me lembrava das circunstâncias, mas agora vacilo, a memória e a imaginação jogam às escondidas, jogam, mas não, na verdade não me lembro bem do poeta proposto, mas lembro-me muito bem da situação onde nasceu a frase, o melhor de envelhecer são as memórias. a memória tem uma quantidade apreciável de pequenas formas aladas que mesmo sem serem convocadas descem do seu adormecimento para nos socorrer.


quarta-feira, 26 de maio de 2010

ir

Frederic Church



passeamos à beira mar, ou na falésia ,com cuidado, os dias passam e entre eles há sempre o mar, o mar transfigurado, o mar feroz, o mar da minha infância. procuro os lugares ermos de onde seja possível partir, há na partida uma voz, um encantamento, um vôo de ave, um rosto emberbe. Quando se vai, mesmo não indo, é tudo de novo possível, a indefinível liberdade sopesada, na testa, roçando os ombros, essa vocação aérea para ser qualquer coisa, qualquer lugar, ou poder, contra a gravidade, ou esquecendo-a deliberadamente, o molde, a quadratura do quadrado.esse remoínho do imaginado, por momentos só ele real que se alarga ou comprime até ser só ansia, o mar quando nunca é do mesmo modo, vai e vem, pulsão a correr para sítio algum,permite reconhecer que esta graça, não sendo um estado de espírito, é da natureza íntima de algumas pessoas.

domingo, 23 de maio de 2010

ai como eu gostava de ir à Argentina

"el secreto de sus ojos" sabe a whisky velho, saboreei-o como imagino que saboreamos um whisky velho, dos suaves na garganta, e lembro de uma frase que ouvi algures " a angústia faz-me estar atento" a questão do objecto da atenção pode, no entanto, ser dúbia, estar atento a quê? por ter deixado escapar a ocasião, por não ter estado atento Espósito perde o que queria, por desejo ou vontade de verdade, mas essa perda não a vê ele apenas como um acontecimento exterior mas como uma condição interior de perdedor, a angústia de Espósito engana-se no objecto ao qual devia dar atenção, ao esconjurá-la contra si, causa nos outros o vazio que sente. é demasiado psicologista? talvez, mas ajusta-se. na língua espanhola diz-se ojos. seca na garganta, um whisky por favor, vamos contar uma história de um amor que espera 25 anos, não, a história do botão numa blusa branca, um botão solto por acaso, ou por gesto louco, deixando o decote aberto ao olhar, podemos esconder tudo menos a paixão, essa, tendenciosa, acaba por nos trair. está bem assim, quando falamos de segredos temos de ter muito cuidado não vá levantar-se do nada a nossa maniazinha de tudo saber e ficar mesmo sem saber nada.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

a banhos



na tv uma reportagem sobre o calor e a praia, agora que a liga acabou (não, não são essas ligas! essas continuam), fala-se do calor.e se as pessoas vão à praia ou não, afinal isso faz toda a diferença, o estado do tempo é um assunto de conversa engraçado, serve quando temos raríssima ou nenhuma coisita de jeito para falar e isso aborrece-nos, mas é uma boa forma de observarmos as pessoas. exemplo:


os que falam do tempo como um desabafo emocionado:


-ai que calooor!


ou os que o situam geográficamente


- é na europa toda!


ou os que informam da graduação e juntam o juízito de valor:


- Tão 34º!!!! isto não é normal!!!


os que são históricos:


-lembro-me que no ano passado por esta altura...


ou práticos;


-bora beber umas bejecas...


filosóficos ou apocalípticos


- assim não sei onde vamos parar...(dentro de água possivelmente, embora não seja isso que querem dizer, falam do apocalipse da secura que é um problema grosso e de difícil digestão, adiante)


os saudositas:


quando era piqueno não havia estes calores...


ou os reivindicativos:


assim não há condições de trabalho, quando é que estes inergúmenos abrem os cordões à bolsa e instalam o piiiiii do ar condicionado?


e este post não serve para nada mesmo mas fica-se com o mar e pronto, bem, assim mesmo, talvez, sorry lá, é mesmo do calor, a propósito não falei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, é natural, depois da coisa feita, da lei aceite,e ainda bem, uf,não há mais nada para falar.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

a meu favor


há um poema do Alexandre O'Neill ,chama-se "A meu favor" e começa com a frase

a meu favor tenho o verde secreto dos teus olhos

algumas palavras de ódio algumas palavras de amor

o tapete que vai partir para o infinito


apetece-me transfigurá-lo, amassá-lo no verde azul do coração e dizer

a meu favor o azul límpido dos olhos
algumas frases em italiano
as preces que não ouviram
os teus dentes brandos
e se me permites
antes de acabar
o desejo bruto de te agarrar
A meu favor a harpa
o jornal amarrotado na mesa
a fuga melancólica para a festa
o riso
e se me permitem
antes de acabar
onde lêem tu devem ler lugar

sábado, 15 de maio de 2010

Razões de estado e outras

Depois de uma semana atribulada de festas futebolísticas e beatíficas, veio o déficit em forma de bicho papão, o capital , as oscilações da bolsa, o preço da moeda europeia, a competitividade do mercado. Pelas ruas as palavras do papa ainda ecoavam, o pai que perdoa e acredita, o pai que ensina a esperar. Haverá uma razão de estado para esta sequência? O Papa, o pai e o Homem de Estado, (santíssima trindade) o mesmo pai que alerta para a dissolução dos costumes (como se estes não sofressem constantes mudanças) e com a sagrada emenda do casamento indissolúvel entre um homem e uma mulher, esquecendo um milhão de pessoas em Portugal que declaram amar pessoas do mesmo sexo, essas, contra a evidência do número (argumento de credibilidade para muitos) são julgadas como responsáveis por essa "dissolução de costumes" e estão indubitavelmente enganadas. Alguém aqui está enganado. que argumentos reais tem o papa a dar? que exemplos?que factos históricos para demonstrar a sua verdade? A constante utilização de conotações morais para palavras como "dissolução" quando estas são descritivas de factos, não revelará uma forma ideológica e manipuladora de as utilizar? Será que de tudo isto se salva uma lógica? é muito mais fácil e reconfortante acreditar no milagre de Fátima, ou acreditar em alguém culto e erudito que acredita no milagre de Fátima, se tantos cultos e eruditos acreditam deve ser verdade ( mesmo que seja uma grande mentira) do que compreender a bolsa, as variações da taxa de juro, a vizinha que vive com uma mulher e quer casar com ela. a crise dos mercados, tudo isto é moderno demais, não entra bem, é estranho, é uma moda, passa.

Seja como for, os não crentes no poder da igreja não esperam outro discurso senão o tradicionalista, a tradição, claro, é tão cómodo e tão falso apelar a um passado mítico e romãntico onde se exorta o bem e se esquece o sujo, o violento , o degradante. Todas as formas de totalitarismo causam arrepios, é certo que este totalitarismo hoje só se move no discurso e na evangelização, mas também é certo que tempos houve em que se moveu com o poder das armas e não foi agradável. Precisaremos nós que alguém vestido de branco nos venha dizer como as coisas devem ser? Precisamos de facto? parece-me que ainda não saímos da menoridade moral, precisamos do Pai, do tutor e enquanto precisarmos dele, ele virá, mas não nos enganemos, nada é de graça, esta protecção tem o seu preço, em tempo de dúvidas acreditar numa verdade sem demonstração, liberta-nos individualmente, é verdade, mas não nos faz crescer enquanto humanidade.


A verdadeira realidade é a de muita gente que sofre e vê os seus direitos esquecidos pelo discurso dominante e o seu sofrimento menorizado pela moral dominante, de vítimas passam imediatamente a carrascos, a elementos a dissuadir e daí que a manifestação contra a Homofobia, em Coimbra dia 17 de maio, às 16.30. seja oportuna e necessária, o discurso contra poder é o único capaz de manter o equilíbrio e a democracia, sinto-o agora,mais que nunca, como uma emergência!

domingo, 9 de maio de 2010





este blogue hoje é todinho vermelho!

sábado, 8 de maio de 2010

domingas

Domingas no final da aula , quando se atrasava, noite alta, não sabia como voltar para casa. dava-lhe então boleia.logo na primeira vez, o cheiro no carro, e os campos a passarem, inquietavam-me, perguntava: ainda é muito longe?, ela dizia não, não, enfiávamos então por um declive no meio do campo raso, e lá em baixo uns prédios, a estrada andava como em espiral, no último reduto, ao fundo,numa praceta de asfalto degradado, deixava a Domingas e os sacos que trazia agarrados, e não sabia como sair daquele fim de mundo. como volto para trás? ela explicava mas só ao fim de algum tempo de levar e trazer, pude situar-me e voltar para casa sem enganos. Domingas queria ser fisioterapeuta, mas no Centro de Emprego diziam sempre que já não havia curso, que tinha passado o prazo, nem emprego,e via muitos que se inscreviam e arranjavam logo boas ofertas, continuava por isso a cuidar de crianças durante o dia e a estudar à noite, queria muito aprender, mas não conseguia aprender, a letra da Domingas, as frases da Domingas. quando voltares para Angola a vida vai correr melhor! dizia-lhe, quando se punha a chorar porque não conseguia aprender. As minhas irmãs todas aprenderam, o meu pai diz que sou mesmo burra!. Não sei quantos anos lá andou enganada fazendo de conta que aprendia, num ensino de módulos muito exigente, agora possivelmente já desistiu e não sabe que um novo ensino substituiu o antigo, aí pode tirar o 12ºAno rapidamente. chama-se EFA. Domingas se me estás a ouvir, volta!

quarta-feira, 5 de maio de 2010

a geração de 60

Steele Perkins
somos todos de 60, este é o ano de todos os perigos, ontem encontrei mais uma na noite com a voz entremelada de algum sono, álcool ou só canseira, o corpo aguenta-se lindamente mas é preciso, às vezes, cerrar os dentes. a vontade de dormir é sempre proporcional à de não dormir, o estribilho das músicas do Léo Ferré, das insónias provocadas a comprimidos ou curiosidade levanta-nos a pestana e põe-nos em bicos de pés, esta sagrada decadência fascina-nos, é inegável. as olheiras, o cigarro, a mente disponível para longas conversas ou apenas para observar, o entrar e sair das gentes, quase todos escandalosamente novos. claro, começámos com o habitual "o que tens feito" como se ainda ontem nos tivéssemos visto e, no entanto, passaram vinte e tal anos. onde está fulano, divórcios, desempregos, lembro-me da tua casa na Costa da Caparica, era tarde, tinhas uns curiosos abat-jours, tão curiosos quanto era impensável nesses idos 80, ter abat-jours na sala. do resto não me lembro. esta geração teve filhos, relações, desilusões, mas o mesmo espírito de procura, procurávamos dar forma a um mundo livre, árdua tarefa, agora essa forma está traçada, não há ilusões, fizemos o melhor que soubemos, somos definitivamente uma geração de demanda, de experiência. estávamos à experiência, ainda estamos.

domingo, 2 de maio de 2010



MAS CA GRANDE DESILUSÃO!!


É MESMO SOFRER ATÉ AO ÚLTIMO MINUTO!

sábado, 1 de maio de 2010

hoje a inspiração foge. não sem antes tamborilar com os dedos na mesa, não sem antes um rubor, um sacudir de cabeça nos alerte da sua surpresa. A consciência sente o incómodo à dor de fugir sem alguém para apanhar, minha inspiração, digo ainda,baixinho,mas, sem pressas, ela roça-se na parede e desaparece. deito-me ao canto da casa do lugar onde veja as ondas e o caniçal, desfio um rosário branco,um canto lento, uma ladaínha: a trepadeira ou o tica-tac do relógio, os foguetes do 1º de Maio, ao longe, a bigorna e o metal, a voz de um compromisso com quê? acho que não me lembro. Se na torrente forte tiveres uma força a submergir-te outra a amparar-te. Hesitas ou sobrevives. Há coisas que correm à nossa frente outras que flutuam em redor.