domingo, 27 de fevereiro de 2011

Morte em Veneza de Luchino Visconti



Começo por onde? Pelo fio de tinta negra que escorre sobre o pó-de-arroz da cara de Aschenbach louco? Aquele para quem a beleza era espírito e descobre que estava enganado? Que o corpo se impõe, que esse mundo de delicadeza e pudor esboroa-se face ao inevitável da paixão, ao sombrio golpe da paixão.Ou falo da beleza ambígua de Tadzio, da morte ou da revelação do mundo como aparência,face ao silêncio despudorado do desejo? Da morte da Aristocracia enredada nos seus pergaminhos,cansada,ou a morte escorrendo pela pedra dessa Veneza de luxo e peste? Todas as frases sobre este filme são patéticas.só os génios conseguem ser tremendamente verdadeiros e tremendamente artificiosos. trata-se do belo, puro, no que tem de demoníaco. e encanta-me, nada é puro, nada.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

to helena

Foto de Burçin Esin

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de se ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de se ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A via enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um
...........................................................parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdoar e todos justiçar dente por dente
de tanto desistir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente


(To Helena - Ruy Belo em 'Transporte no Tempo', Editorial Presença)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Mergulhar na ansiedade, do mesmo modo que os panos brancos mergulham na tinta e tingem-se. os tipos que mergulham com tubo sustêm a respiração enquanto a luz do sol se esvai à medida que mergulham mais fundo e o peso da água é uma parede. mas de que serve escrever sobre isso?Os cadernos de literatura rejeitam a ansiedade, a poesia feminina nem tanto, não pode fugir-lhe. Escrever sobre qualquer coisa de íntimo terá um efeito qualquer, esse efeito depende talvez da vontade de quem escreve. eu quero dizer, preciso de dizer, que te encantem as minhas palavras, também, embora não surjam com guizos, desejariam tê-los. articulemos:a ansiedade é nossa e tudo o que é nosso é desejável, pela razão de ser da nossa natureza. se a ansiedade é natural então ela é desejável. se funcionássemos assim, então não havia ansiedade, porque esta surge na medida em que há um aquém e um além. além o rasto de um paraíso, aquém o mesmo, coisas, poucas. há mesmo qualquer coisa de errado connosco. devo torcer-me ou deixar-me ir? ficamos a meio dos dois, inclinados para os dois, boquiabertos e ligeiramente enraivecidos com os dois, será mesmo uma inaptidão para viver a liberdade ou o resultado de a viver, ou de a pensar? pensar cria uma erosão estranha, uma distância ao mundo exterior, traz para muito perto as sensações, não como são, mas esgotadas, exaustas, de se medirem sem resultado pela perspectiva de um estranho, o pensamento. intruso incontrolável. usurpador sofisticado.
Fotografia de Gerard Castello Lopes

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Ora, hoje, 14 de Fevereiro, antes que o dia acabe, antes de pensar, antes de amparar os papéis, voltar a cabeça, antes de deixar o dia, ou quando o vou deixando, aquietar, resguardar, manter, desacelerar.
hoje evoco Baudelaire, quando se punha a dizer que as lembranças são mais uma forma de sofrimento e, por isso, inúteis, em cima do dorso da vida, chamamos vida à mistura finíssima de todas as lembranças com pequenas queimaduras da pele, mais o latejar constante do sangue? ou o sonho, transparente, e a penugem baça de estar acordada.

(este relógio está uma hora pra frente, atraiçoando o momento)


foto de Jorge Rato

sábado, 12 de fevereiro de 2011

ando às voltas sobre escrever. ando sempre ou amiúde às voltas sobre escrever. por razões diferentes. penso na praça vazia de ontem à noite e no arrebique da ruína do prédio, e outras praças querem ganhar a supremacia sobre os mais íntimos e inconfessáveis pensamentos. compreendo que nem tudo se deseja dizer, ou melhor há vários níveis, digladiando-se. Desejos silenciosos e desejos ruidosos. A praça Tahrir. É remota no sentimento mas imperiosa. Interessa-me a Praça Tahir. Terrivelmente nobre é o mundo árabe. Jovem também. Clamoroso. mas de novo a ruína do prédio, a mulher caída sem vida no chão do seu apartamento da Rinchoa. doce foi dançar contigo naquela loja. a impossibilidade de ser livre. de não sofrer. O pensamento evoca, sucedâneos, uma engrenagem complicada de sentimentos. sírios cegos ou ardendo, são todos convocados, sem contudo, ninguém os convocar.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sobre Livros

Os livros são objectos manuseáveis, de peso adequado à medida dos pulsos, de formato adequado à medida das mãos. O que se diz dos livros está geralmente errado, guardamo-nos virgens, para virar as folhas e humedecer a ponta dos dedos, e aí também nada a dizer, fazemo-lo no mais circunspecto silêncio, no mais delicioso veneno, será assim como acender a luz de cabeceira numa madrugada de nevoeiro na serra e sabermos da insónia pelo eco da história que mal nos tocou e aguarda o nosso madrugar para abrir janelas sobre o vale, assim é, nem somos nós mas outros, ou nós outros enquanto a linha que cobre as palavras se desgoverna da órbita para nos desassossegar. se os livros fizessem amor seria para nunca esquecer.


Imagem da exposição de Alexandra Mesquita na Babel, rua da Misericórdia, Lx