ninguém esqueça que o amante é funcionário
pega, despega a horas e desoras
acotovela-se na fila
e, às vezes, deixa escorregar a pérola que tráz na íris
e rodopia do lóbulo da orelha para os papéis amontoados no chão
o amante raramente sai à rua sem o modo funcionário dobrado debaixo do braço
e uma praga debaixo da língua
protela e recolhe
e só depois faz o gesto da anca
tarde
já os pássaros debicaram a pele
e a esfregona da mulher da limpeza
se abateu sobre o patamar da escada
o amante está para a anca
como o funcionário para o relógio
vigia-a cuidadosamente
e sempre que o ponteiro pára
sai pela janela a voar.
terça-feira, 31 de março de 2009
domingo, 29 de março de 2009

às vezes o coração quer e não tem o que quer. e nada em nós compreende porquê. compreendemos que é por condição que assim acontece mas não aceitamos, debatemo-nos. esta luta contra um fantasma poderia ser entendida como uma luta pelo absoluto, pela conformidade perfeita entre desejo e satisfação infinita, um desejo de completude e, se assim fosse, o sofrimento causado só nos engrandeceria, mas quando estamos tristes, ficamos pequenos e inúteis como trapos esburacados e recuamos para o nicho microscópico do eu onde só há sobressaltos e mais mágoas, uma solidão cósmica e um sapo que fuma cachimbo até rebentar. Encosto a cabeça contra o muro frio da casa, procuro uma sensação física forte que me roube por momentos a angústia. A águia com suas garras de sangue sobrevoa.
segunda-feira, 23 de março de 2009
domingo, 15 de março de 2009
Eastwood, de novo

É absolutamente, absolutamente, desculpem a unanimidade mas o filme é bom, surpreendente, bem feito, humano até à medula, actual, e grande. Em vez de cavalos há um Ford dos anos 70, há carros, máquinas, homens montados em carros. Homens sem condescendência. Há uma prece em silêncio...Ave Maria... um padre sem história mas com carácter, uma rapariga chinesa que não tem medo e o choque de frente de olhos abertos a esta realidade violenta, feita de gente com valores e de gente desenraizada e sem escrúpulos.Há bons e maus mas matizados, uma série de histórias anónimas que tornam as personagens vivas e não fantoches de feira. Este e o outro filme de Eastwood voltam a criar a paixão do cinema , da arte, pura e dura de contar histórias.
quinta-feira, 12 de março de 2009
A lua, a doce lua, a hipnotizadora, a exigente, a eterna e constante lua. quando assim nasce lenta, luminosa e lenta com suas curvas de lua cheia sobre o casario anónimo, abre a parte sensível da alma, esse lugarzinho apertado que quer ser infinito, porção de nós que já de nós quer sair para ser nas coisas, naquelas que tremem e lampejam e seduzem. Luz nas trevas assim são algumas noites e são mais que as palavras dizem, pois se nós as procuramos para se fazerem, também elas, luz. As pessoas com seus casacos invernais demoram na entrada e saída das casas a respirar, antes dos muros lhes cortarem a visão. em noites assim é preciso deixar vaguear os passos e nada compreender, deixar-se ir numa impressão e não voltar senão quando o corpo de cansaço ou a circunstância do trabalho nos martelar com seus ferrinhos de coisa ferrosa e persistente. porque aí noite, onde estás, haverá sempre uma parte de nós que fica, de casaco meio desfeito, nas dobras da noite que ficou.domingo, 8 de março de 2009
Uno aprende que lo imprescindible no eran los libros
no eram los discos
no eram los gatos
no eran los paraísos en flor
derramándose en las aceras
ni siquiera la luna grande -blanca -
en las ventanas
no era el mar arribando
su rumia rompedora en el malecón
ni los amigos que ya no se ven
ni las calles de la infancia
ni aquel bar donde hacíamos el amor con la mirada.
Lo imprescindible era otra cosa.
Cristina Peri Rossi, Estado de Exilio
terça-feira, 3 de março de 2009
A Festa na casa dos barcos, ou festa no clube de vela, os títulos deste quadro de Renoir não detêm a unanimidade, belo, a unanimidade congela e retrai nenhuma dessas sensações pode nascer ao olhar. O que me atrai neste quadro é esta atmosfera de lazer, esta descontracção e absorção no que é pueril e leve, os momentos, o presente irrepetível e espontâneo, o gesto que nenhum significado traduz só aquela tarde e a luz que dela emana sobre o corpo. Talvez precise de férias ou de me deixar banhar também nesta luz. Entrar na casa dos barcos, beber um vinho, acariciar um gato, colocar um chapéu de palha, ou deixar crescer barba e bigode. Não, melhor,um ramalhete de papoulas no cabelo.
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