terça-feira, 30 de outubro de 2012

lucidez


Ser lúcido! Não ser lúcido? lenga-lenga. Não existe tal coisa como a lucidez. Depende da ficção dominante, assim descrever uma realidade dominante significa lucidez,  sendo aqui dominante equivalente a convenções aceites por um certo grupo dominante, intelectualmente dominante.Mas há verdade. Há um universo empírico verdadeiro, assim como há um universo psíquico verdadeiro. Havendo lucidez no que concerne a cada um deles, quando o restringimos. Lucidez será tacanhez, então.
Desconfio de quem advoga pela lucidez, desconfio de discursos de intenções. A verdade empírica de estar sentada a escrever isto, não pode ser separada da verdade psíquica de achar qualquer bom ou mau sentimento nisto de estar para aqui segurando nenúfares e reequilibrando economia e prazer. Não me esqueço dos carros lá fora, do cortinado estático e pesado, do cabelo que cresce mais na Lua cheia e de ser graduada em filosofia. Na realidade destes factos não há lucidez nenhuma. Só a crise e o desemprego, do resto não é permitido falar pois corresponde ao etéreo. Ajoelhemos então, olhemos as mãos e respiremos na tranquila inocência do nosso desespero.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

arena

Ontem, pela primeira vez, estive muito perto de um estádio de futebol. Contornei-o, do lado de fora, ( ainda são 15m a andar), depois a elevação, os ferros em altura,  as grades, as frinchas por onde se espreita o verde da grande arena. O majestático da estrutura acorda ecos das grandes catedrais góticas, não parece haver dúvida, estas são as novas representações da fé dos homens. O hino  da claque do Benfica dos "No name boys" tem um verso apologético: "Quero morrer no estádio!" mas dai a Roma o que é Romano, as arenas de Roma, o Coliseu, a semelhança é evidente. Os cristãos lançados às feras, os cristãos morrendo para erigir as grandes abóbadas das catedrais. As imagens convocadas de grandes delírios, martírios e corpos extasiados e depois a pedra a testemunhar, fria, inerte, abrindo as portas para a perpetuação do ritual. E se fechassem a arena? a cadeado, digo, e a vendessem à peça?

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

In Memoriam Manuel António Pina


Café do molhe


Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.



É uma dor que, quando se escreve assim, também se morra. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

oficio de escrever

De todos, este foi o ofício que sempre quis ter. Mas nunca me lembrei de inventar personagens e histórias, a criação de um mundo paralelo e plural nunca me interessou na escrita que desejava, o ofício transpirava-me a confessional, solitário, escavando  dentro de emoções, sem artifícios técnicos. Queria falar de sentimentos,  essa amálgama bravia que a própria linguagem parece não dar conta. Queria inventar na linguagem e não servir-me dela. Não sei porque quero isso, o imaginário do escritor à sua mesa de trabalho com a máquina de escrever, sozinho frente aos elementos, lutando contra o génio invisível da passividade, do cansaço ou da indiferença, fumando e bebendo, convocando pela sua entrega uma verdade, crua, a sua verdade, aquela que resulta do acto de criação, era a imagem perfeita onde todo o mal e mesquinhez humana poderiam ser resgatados. A Arte é de todas as manifestações a que mais se aproxima do absoluto, sei-o bem, já experimentei esse fulgor, essa tragédia grau zero da reconciliação. Faltou-me talvez a coragem de ir até ao limite, de crer até ao fim. Tive medo do mundo ou de mim, não sei bem, recuei. Não há grandeza no recuo, mas pode haver outras formas de retomar o fio deixado para trás, não acredito em vocações falhadas, embora a ideia possa seduzir por momentos, dar alguma dignidade ao que nunca chegou a ser.  Também não me interessa saber porquê. Todos os dias me convenço que ainda pode acontecer, penso ser essa a estratégia dos falhados,  prefiro chamar-lhe esperança. Há luz que baste neste céu para todas as formas se revelarem.
 

domingo, 14 de outubro de 2012

Compra e venda a prestações



O mercado automóvel, como agora se diz, o mercado automóvel.
Sábias palavras, escorreitas, abrangentes, pasteurizadas, leves, ordenadas, confiáveis. Imagine-se uma roulotte que vende cachorros quentes à porta de uma discoteca da moda. Imagine-se o tipo da roulotte a deixar de vender cachorros quentes e passar a vender  automóveis. Mudança de cena, espaços amplos, a camisola interior dá lugar à camisa e gravata, mas a pinça na mão para satisfazer o cliente e  o dinheiro, são o mesmo, só que aqui falas de muito mais, dinheiro, claro.
O cliente é rei, tem sempre razão desde que aceite as regras: podes escolher recheio, a salsicha nuazinha e as opções. A diferença está no preço: as prestações são a saída inteligente, é assim porque sim... tens de hipotecar, aí a seis anos ou sete, podes assim escolher opções mais luxuosas porque dividido por  70 prestações nem se nota. Bato palmas porque tou a ver a ideia: vender o sonho. Sobre quanto vais amargar para o pagar não se fala. Não interessa.  Enquanto a roulotte te proporciona instantes de prazer guloso com consequências previsíveis a curto prazo, estes aqui, os do mercado automóvel, fazem-te crer que precisas do que não precisas e agarram-te durante uma parte importante dos anos que te restam para viver, sugam-te, vampirizam-te, deixam-te sem pinga de sangue e depois quando olhas para a lata velha finalmente tua, descobres que não anda, e tens de lá voltar. ao mercado.

domingo, 7 de outubro de 2012

outono


ando na garagem à procura de um livro, muito pó, outubro também, os barcos apitam no rio.
 Seria uma manhã de luz, há espaço nos olhos para o fio a prumo da luz de outubro caber. Não sei praticamente nada, armei-me de coragem para deixar a seguinte  mensagem  no caminho: Aqui, no apartamento sem terra, espantada no ar, engoli o anel e abracei-te.
(de todas as palavras só a a última faz sentido).A cidade agradece, que gente no ar possa escrever, modo de ganhar terra, retro escavar em sonho terrenos baldios à imaginação,
ou ainda para poder colocar nas folhas caducas das árvores, a melancolia: espécie de sonho encriptado.
procuro um livro em apartamento.stop. outubro. stop. os meus braços a deslindar o novelo do rio, ou tu, encostada ao dourado lasso do mês.stop
 
a foto não sei de quem é 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

gatos


O que têm os gatos de tão doidamente divino? Compreendi finalmente. São perigosos felinos num tamanho em que podemos apreciar a especialidade feroz sem temer as suas garras. Com as pessoas o mesmo me é dado admirar: adivinhar a sua ferocidade sabendo que dela decorre, por sua vontade, graciosidade.