quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

proposta

Podes torturar-me com a tua chama irrequieta

ou chamar os discípulos envergonhados de Botticelli.

se te parecer, como a mim me parece, um ritual apoquentado

podes ainda entregar-me as mãos e fazer-me rodopiar sobre as falanges

numa acrobacia feroz servir-te das minhas bocas

inventadas

manter sussurante a minha vontade de ti

para entontecer a lua ou, na melhor das hipóteses,

encontrar em lume brando a essência do Sol.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

sorte

o tamanho ou forma de uma vida vê-se tarde e ainda assim mal. muitos só a vêem depois de morrer, outros medirão o que eles não souberam ou não puderam medir. a imagem do Van Gogh é tão paradigmática quanto inócua para esta afirmação. há factores a ter em conta que só se compreendem com distância, grande distância, o da sorte é um deles. justiça ou sorte? sempre acreditei numa justiça, Deus era o socorro mas a razão também, a razão engendra boas justificações para conferir justiça a este ou aquele acontecimento ou acção. posto isto, para dizer que muitas vezes não somos bons juízes do nosso quintal, engendramos toscas apologias da vidinha que levamos, ou toscas queixas. Abençoar a sorte e deitar ao vento as mais sólidas respostas. quem disse que a sorte não era a mais complexa e impenetrável das musas? quem segurou por debaixo do traseiro a desgraça havia de a olhar nos olhos, fixamente, quem a sentiu, empurrou-a para longe, fixou o olhar na plúmbea rosada da manhã, alvoreceu, meia tonta, não vociferou, resguardou-se da nortada e sonhou, sonhar é bom para encontrar o que seja,nos sonhos a vida cresce ou míngua mas não pesa tanto.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Whitney


A primeira cassete que comprei era da Whitney Houston. Lembro-me do porquê e do onde, apesar de terem passado muitos anos, muitos mesmo, quantos não digo, mas vou dizer onde, foi ali na Rua Augusta numa casa de música que tinha uma série de vinis e cassetes cá fora, muito terceiro mundista (agora só aos chineses é permitido ter tachos, panelas e alguidares no espaço público), na altura havia aqueles suportes rotativos para cassetes, com os preços colados com etiquetas de papelaria e eu tinha acabado de ganhar o meu primeiro ordenado visível, depositado numa conta bancária. Comprei uma Pioneer brutal (que ainda tenho) com prato para discos e leitor de cassetes, tudo em módulos separados. A Whitney foi a cereja no topo do bolo. Na capa, era uma negra bonita, por dentro uma voz...bem, eu adoro a voz e a rítmica da Whitney. Ao vivo, dá-me a impressão que não vai aguentar o próximo acorde, que se vai finar, aquilo é tudo, porque é demais, timbre, respiração tudo ao limite. Gostava da onda Godspell da sua atitude (ela aprendeu a cantar no coro de uma igreja Evangélica). Ergo a taça à Whitney e resisto a dizer que os deuses não morrem, é uma banalidade, mas não resisti, afinal.

Quanto à razão pela qual adquiri a cassete é tão íntima, que nem a mim própria em voz alta contaria, segredo reconfortante para este dia triste.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

caos

se fosse anjo, voaria agora para aí, para ver, e não ser vista, gostaria que a presença se fizesse sentir sem o peso triturante do corpo, mas depois, depois de atenuar esta curiosidade, não saberia agir como os anjos, seria urgente voltar a ele, ao corpo, com seus cigarros fumados, suas barrigas de carne assada e verrugas, peles e pêlos, a sequência de águias sobre o nariz, os vocábulos tatuados nas partes mais íntimas. gritando ou embalando. sagrado desconhecido, o corpo, a ele devemos os nomes mais silenciosos. Os nomes colados à madrugada. Os nomes que acordam a tua ausência.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

ponto de desordem

Passamos o tempo a defender-nos com aquilo que somos. eu sou isto, eu sou aquilo, logo, tens de me aceitar como sou, eu e as minhas circunstâncias etc. por outro lado, acreditamos que o amor é exactamente o processo pelo qual alguém nos aceita como somos, e a inversa, o processo através do qual deixamos de nos preocupar com o que somos para nos preocuparmos exclusivamente com o outro. Ora isto é um nó, tão contrário a si mesmo é, ou parece ser, o amor. Teoricamente falando, claro, somos todos, pelo menos os que pensam, dados a teorias sobre estes assuntos. Nenhuma destas teorias vale um abraço ou um beijo. O que fazem as teorias é tapar os nossos buracos emocionais, os que foram surgindo à força de acreditarmos e desacreditarmos, a perda de confiança nos nossos sentimentos, na força deles pelo menos, a perda de confiança nos outros, na sua capacidade de nos amarem, e no fim a perda de confiança no amor enquanto ideal esburacado por relações ditas de amor falhado. Fico totalmente "à toa", quando tento situar-me, quando tento perceber e só sinto, dor e às vezes alegria, entusiasmo, ambos me deixam confundida, na expectativa, sou como toda a gente, isto é, para concluir, que no básico, somos todos demasiado semelhantes. Acredito que o amor, ou desejo, ou amor enquanto desejo, rompe as cancelas do medo. Narcisismo e poder, não. O desejo é o motor que põe em marcha tudo o mais que tiver de vir e queremos que venha, a bateria imensa de coisas é infinita, não escamoteável, nunca reduzida, nem menosprezada, nem derivada, nem julgada. Não queria que fosse mais uma teoria mas se calhar é. Perdoem-me.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Quem tem medo de Virginia Woolf?
















Na livraria do Teatro D.Maria II contemplo a exposição fotográfica sobre o autor desta peça: Edward Albee. Um homem bonito, um homem que não teria problemas com as mulheres. Este facto não será por si próprio determinante, ninguém sabe o que esconde a beleza, perversidade ou bondade, a beleza física é um dom que ameniza a vida do seu portador e o inclina naturalmente para reflectir o que recebe, nós somos, acredito nisso, uns reflectores mais ou menos consequentes. Quando se trata de criadores a questão é mais tortuosa porque a necessidade de criar é sempre indício de um excesso ou de uma carência, um desequilíbrio entre autor e mundo cujos contornos seriam morosos e ainda assim indefiníveis. A obra pode ser a soma destes factores, uma soma que tem mais parcelas, mas a mim interessam-me estas. A peça, burguesa (quero dizer, palavrosa, psicologista, dramática) tem a tortura dentro dos limites de um certo bom gosto intelectual, tortura resultante do tédio de uma vida boa. A visão confiante no amor e nas relações humanas não fica demasiado abalada. Na verdade, aquelas personagens torturam-se com meticulosidade mas não se deixam, não se matam, não mudam um milímetro aos seus hábitos ou personalidades, tudo fica como antes, tudo parece um jogo, nada mais, um jogo para fugir ao tédio das noites e dos dias iguais. Todavia a fuga é um escape para perpetuar a mesma situação infinitamente, sem chama, como náufragos agarrados uns aos outros, siameses na miséria, incapazes de a mudarem, diria até, comprazendo-se nela. Volto ao retrato do Albee, a beleza ameniza os contornos mais rudes e escarpados, o dinheiro também, se juntarmos a estes ingredientes o conhecimento percebemos o carrossel vicioso da peça. Um carrossel onde as criaturas gemem nos gonzos, mas nunca se desarticulam.