domingo, 29 de novembro de 2009

cinema

"A linguagem verbal está morta" diz Tetro, di-lo no entanto através da linguagem verbal, é ainda pela linguagem verbal que surgem os compromissos e se desfazem. Em Tetro há um pensamento que se interroga mas para além e mais importante há laços que nenhum pensamento por mais despegado poderá quebrar. vi o filme numa noite chuvosa e gélida onde a meteorologia previa alerta laranja para certas regiões do país e as árvores esperneavam com o vento. são-me saborosas estas rotinas de cinema, este calor das salas no inverno e as imagens a correrem à frente dos meus olhos. gosto disto, depois sair de novo e a noite já não nos apanhar desprevenidos porque não paramos de querer meter nas palavras a bravura do que sentimos por dentro, esse entusiasmo. reparo num homem que caminha com os pés descalços na rua molhada, a realidade confunde-se na fantasia e de olhos vermelhos, ainda enevoados de outras ruas, reconheço burguesa esta arte da fuga. ai ir. ir mesmo, para enfrentar tudo de olhos bem abertos.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

democracia e dinheiro

a letra dos dias tem sido a justiça. os processos em tribunal e a quantidade de arguidos desde o Caso Casa Pia, alimenta os jornais e as opiniões. São arguidos em processos que duram e duram até não sabermos quem é de facto culpado porque já não os julgamos a eles mas julgamos antes a justiça. Julgar a justiça é estúpido e perigoso. Tribunais e juízes confrontam-se com todo o tipo de argumentos e provas e contra-provas nestes casos tubarões (gente com poder), testemunhas reais e compradas, infindáveis artimanhas criadas na habilidade dos advogados a lidarem com lacunas e fraquezas da lei. São as leis que permitem estas brechas mas no caso dos pés-descalços todos sabemos que os julgamentos são rápidos e eficazes. Questiono mais a seriedade dos advogados que a dos juízes, a fraqueza da lei, a sua falta de clareza e os seus limites deixam ao critério de advogados sem escrúpulos todo o tipo de recurso. Bons advogados podem alterar a visão da verdade, podem fazer condenar inocentes e libertar criminosos e isso não é justiça. Veja-se o Caso Casa Pia, os desvios constantes ao essencial, a poeira lançada pelos advogados, nenhum esclarece seja o que for.Porque não há-de o Carlos Cruz ter um advogado desconhecido escolhido ao acaso? Toda essa gentalha só contribui para este clima de impunidade. O dinheiro assenta a democracia no banco dos réus. Não parece, mas é.

sábado, 21 de novembro de 2009

gripe F

acho que tenho uma gripe mas nem sei de que letra é, certamente das que começam com f...não haja dúvidas. tenho a sensação de ter furos por todo o lado e verto, ehehe é um horror, ajeitei lá no supermercado o saco ecológico para caírem os pingos do nariz longe da bancada das compras. que no saco só toco eu e bem ,não tinha lenços, não merecem estas amostras de papel que me lixam o nariz o nome de lenços, coisa esquisita, nada a ver com os lençinhos macios bordados ao canto que a minha mãe me dava quando estava constipada, mas seja como for na cegueira vale tudo para estancar a torneira. e não tenho nenuma certeza se no meio destes espirros monumentais não contagiei os tipos todos da fila, mas que querem? tenho de fazer compras, não? esta mania de ficarmos de quarentena é complicada para quem vive sozinho e tem de comer, assoar-se, beber, etc. ainda não adoptei a moda das compras ao domícilio, faz-me sempre lembrar quando vivia em Alfama num quarto andar sem elevador e telefonava para o homem do gás.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

hedda gabler

a história de hedda gabler, a bela e má, conta-se em três linhas: Hedda ama L mas casa com S. com S pode ter um compromisso, com L não, é só desvario. hedda quer segurança por ou apesar do fogo e da turbulência que sente, querendo recusar o irrecusável acaba vítima dele, domina e no fim é dominada. o texto do ibsen não diz nada disto, não fala da psicologia, ela, a psicologia, está no comportamento, hedda enfastia-se casada, anseia, da beleza faz ariete, da inteligência um laço de caça. na moral burguesa é a manipuladora de sentimentos, sem moral, vemos uma mulher dominadora, a mais forte. mas no seio da burguesia os fortes são os fracos, os que não opõem resistência. quem ganha afinal? o marido, o que não tem talento para nada senão para a paciência. perdem os apaixonados.

domingo, 15 de novembro de 2009

auden

em fios finíssimos se tece a teia com que resguardo o corpo quando o mesmo dotado de alma (que nem sei se existe), treme. em fios finíssimos se tece a teia de uma história feita de avanços recuos e galáxias e fogo, aguentaremos. se o universo afinal for apenas indiferente, não me regozijo da dispersão arrojada do pensamento mas a trama não se perde nunca, essa obscurece qualquer pensamento ou o ilumina, pois que na essência onde o movimento se dá também os contrários se juntam no mesmo.
Lembro a discussão com o meu aluno: A homossexualidade é feia, disse ele. Vá, André, que acharás deste poema? Diz-me tu. Auden era homossexual. A palavra não colhe? E se é a alma (que não sei se existe) a impor-se?




Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good



W.H Auden, Funeral Blues

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

união de facto ou casamento?

O PSD propõe uma modalidade soft para as uniões de casais do mesmo sexo. Uniões registadas. A princípio pareceu-me a solução mediadora: resolvia a questão dos direitos cívicos, saúde, habitação,impostos com a protecção que têm os casais legitimamente casados e, ao mesmo tempo evitava a fractura social que a legalização do casamento homossexual poderia trazer. Depois, de pensar um pouco, já não me pareceu uma boa solução porque não resolve nada. O nome parece-me descriminatório. Porque não legalização de uniões de facto? Continuo a pensar que a questão tem que ser resolvida, não se pode ignorar 10% da população como se não existisse, quando existe e é activa, votante, contribuinte etc. Mas se a questão fosse só de direitos, legalizar as uniões de facto resolvia. A questão do casamento é no entanto mais arriscada e mais ousada porque essa sim pretende tornar a relação homossexual uma relação com o mesmo grau de aceitação da heterossexual. Porque o casamento tem um vínculo social mais profundo que a união de facto, esse vínculo alicerça-se no tempo, na memória, na história. Nos anos 60 considerava-se coisa burguesa e hipócrita. Lutava-se pela autenticidade do amor fora do aval do conformismo institucional. Agora um movimento pela liberdade das minorias faz do casamento uma bandeira. O movimento que permitiu a liberdade sexual também se opôs ao casamento e agora reinvindica-o. Os tempos mudaram. Sim, mas porque será uma bandeira de liberdade o que há quarenta anos não passava de um símbolo de escravidão?

domingo, 8 de novembro de 2009

ervilhando

hoje quero falar e calar-me à vez,ainda não decidi que parte quero calar ou qual é a que quero falar, fala-se muito, em todo o lado mas por via indirecta. fala-se para um microfone, escreve-se por aí fora, dão-se opiniões e conta-se tudo, mostra-se tudo explica-se quase tudo. as palavras correm umas atrás das outras inflectidas ou monótonas, digo o que me vai na alma e quando digo já parece não estar em lado nenhum. mas apesar de toda esta euforia não é o discurso que conta, em boa verdade o discurso conta pouco, talvez por ser tão cómodo e fácil falar numa sociedade onde se permite que tudo seja dito. nada então nos choca ou faz estremecer. mesmo o mais imbecil e desinteressante dos seres tem o seu momento de visibilidade cósmica, debita qualquer coisa no écran por onde passam milhares de outros fumando ou bebendo cerveja. COMUNICAÇÃO. barra a queda para deixar ir dizendo, dizendo, não parar de dizer. pois se calar é assumir a verdade da coisa: Nada temos verdadeiramente novo para dizer.
mas afinal não é este solilóquio senão uma questão de inveja. pergunto-me invejosamente: como é possível um blog como o do Bruno Nogueira ter mais de 2.000 leitores por dia? é muita gente, caramba, que procuram esses tipos todos? aquele ar tá-se bem, aquela coisa dada à brincadeira negligé. é mesmo misterioso isto.
fotografia: Raymond Depardon

domingo, 1 de novembro de 2009

chuva

chove lá fora e o tracejado da chuva nítido à luz do candeeiro de rua faz parecer estranho este bairro, estas casas, como pracetas perdidas do Uruguai, momentos antes de um grito numa qualquer taberna empurrar para a chuva outro corpo. assim. não conheço o Uruguai, sabes, mal conheço as sardinheiras tímidas nos vasos tímidos das varandas inexistentes do meu prédio. facilmente poderia ceder à tentação da queixa quando assim chove nas pracetas do Uruguai perdidas à conta de reflexos dos meus olhos miúpes, reconheço contudo que me é dada fantasia suficiente para desenhar mundos onde há apenas a noite e pouco mais.
imagem daqui: diariodeummago.blogger.com.br