segunda-feira, 29 de abril de 2013

Proust

 
José Malhoa "Atelier do Artista"
 
«Deixou de apreciar o rosto de Odette segundo a melhor ou pior qualidade das suas faces e a doçura de pura cor de carne que supunha dever encontrar-lhe ao tocá-las com os lábios se alguma vez ousasse beijá-la, mas como uma meada de linhas subtis e belas que os seus olhares dobaram, continuando a curva do seu enrolamento, juntando a cadência da nuca à efusão dos cabelos e à flexão das pálpebras, como num retrato dela em que o seu tipo se tornava inteligível e claro.
Contemplava-a; um fragmento do fresco aparecia no seu rosto e no seu corpo, e desde então procurou sempre encontrá-lo lá quer estivesse junto de Odette, quer estivesse apenas a pensar nela; e embora não tivesse apego à obra-prima florentina a não ser, sem dúvida, porque a encontrava nela, contudo aquela semelhança conferia-lhe, também a ela, uma certa beleza, tornava-a mais preciosa. Swann censurou-se gostos de arte mais refinados. Esquecia-se de que Odette já não era por isso uma mulher conforme ao seu desejo, já que precisamente o seu desejo sempre fora orientado num sentido oposto aos seus gostos estéticos. A expressão «obra florentina» prestou um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer penetrar a imagem de Odette num mundo de sonhos a que ela não tivera acesso até então e onde se impregnou de nobreza. E ao passo que a visão apenas carnal que tivera daquela mulher, renovando constantemente as suas dúvidas sobre a qualidade do seu rosto, do seu corpo, de toda a sua beleza, enfraquecia o seu amor, essas dúvidas foram destruídas, e esse amor garantido, quando, em vez disso, teve como base os dados de uma estética indiscutível; sem contar que o beijo e a posse, que pareciam naturais e medíocres se lhe fossem concedidos por uma carne arruinada, ao virem coroar a adoração de uma peça de museu pareceram-lhe ser sobrenaturais e deliciosos.
 
Marcel Proust "Do lado de Swann"
 
A imaginação apesar de maltratada ressurge como o instrumento primário da vida, ou melhor da possibilidade de vivê-la, pois sendo alguma coisa a vida, como tantas outras  coisas modela-se com as mãos mas escapa para esse pensamento admirado e inconformado propenso a ver mais ou menos, e de outro modo, para além das evidências. Há uma outra porta, por onde havemos de sair quando já abrimos todas as do quarto e vimos as vistas do saguão, a coragem de levar isso a sério, ou a brincar mas levá-lo por diante, abrir portas que ninguém vê, pequenas, grandes, para outros saguões que ninguém esperaria. 

6 comentários:

cs disse...

Tempo e memória, é isso?
espaço? não sei se percebi:(

Helena Serrão disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
via disse...

tempo, memória, a imaginação compondo imagens e associações, o que permite a distância para outro tipo de contemplação.

cs disse...

se fosse o fb colocava um like :))

via disse...

cs: mas não é e ainda bem porque o fb é demasiada mixórdia temática!!prefiro blogs, são mais garbosos.

cs disse...

hum...