quinta-feira, 31 de março de 2016

I

Vejo-me a andar às arrecuas
sobre a ventoinha suspensa do real
berço da vida
palimpsesto
a bóia segura por andaimes em risco de turvar
e o meu olhar pedra rasa
o meu olhar olho
 meu radar
de mulher que morreu duas vezes
enquanto as imagens iam e vinham
em cadência sobre a pele baça
 membrana inútil
do tempo que falta para não ter alternativa à morte.




II

À porta do museu alinho as frases azuis
dos diabos celestes
magros peregrinos
sobre a superfície lisa do papel
Somos agora tu e eu
e seremos ainda mais  tempo em nenhum tempo
não interessa
pois somos agora
seremos
arredondadas açucaradas
gárgulas nos dentes de ouro dos ciganos
Somos agora tão ansiosamente eternas
como as vertentes douradas
do monte ao entardecer primaveril
seremos ainda quando os passos avivarem a pedra gasta da rua
e a respiração for silenciosa
e não houver rio nenhum
e nenhuma sombra a deixar atrás
Seremos ainda agora
expectantes e belas no tampo marron da mesa de café
enlutadas sem história
furando os mínusculos orifícios das palavras veladas
ódio indiferença
no frontispício dos teatros que vão construindo
sem o nosso consentimento.