terça-feira, 30 de dezembro de 2014

BORDERLINE


Lee Miller

acho que vou escrever. aporética escrita em balanço tribal. vou pôr no caldeirão uma pitada de saudade e outra de humanidade, algum ressentimento, não tenho medo das palavras feias, nem das outras, corriqueiras, como, fiz bacalhau cozido e vagueei pela casa poeirenta à procura do último pai natal de chocolate. serventia de astros os meus tornozelos de condessa com papelotes de urso das cavernas. arrumei a gabardine e pus no prego alguma da emoção esvoaçante dos últimos dias. Dezembro era, por esta altura, um mês dado ao edredon e à falange das filosofias perfiladas num estendal de papeis, les raisonements em pedaços, os meus pés eriçados de frio no chão áspero da cozinha testemunhavam a aflição. malditos "raisonements", antes Paris, à la Bastilhe!! renunciei em definitivo aos copos de leite e ao acre das bebidas fortes, assoei-me ao papel de embrulho enquanto a caneta escorregava pelo sono como uma lança escorrega do cinto lasso. 
chamo-te a mim nestas ocasiões e em todas as outras em que o fim era um começo branco e a tua boca adormecia na minha para juntas calarmos a fé do corpo e a majestade dos ossos. atrevia-me a ver-nos regar as flores de uma varanda dada ao mar e às ociosidades cinéfilas, onde o sol, as gaivotas e as meias de lã bordavam a sequência dos dias.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Nataleeeee


Sabine Weiss


Sinceramente, irrita-me o capitalismo, o conceito e a prática, suspeito que esta irritação, muito à flor da pele, não possa ser transformada em força libertadora, não penso iniciar qualquer novo sistema, nem juntar-me a essas poeirentas aldeias onde se vive em comunidade e na paz sem desperdício, a ideia de viver comunitariamente não me agrada nada, não me apetece aquele "nós" dos projectos colectivos. Tenho a certeza que não estou só nesta irritação, muitos dos ocupados na consumação sacrificial dos centros comerciais, rejubilam de ódio contra o capitalismo, parece o eterno odiado pai, amado e odiado mas imprescindível. A ser  modelo deixa-nos abandonados às nossas congeminações, não nos pune por isso, também não nos faz sentir melhores. Enfim, estava pensando nos malefícios tóxicos deste Natal mas agora lembrei-me da história, a história enfraquecida pela repetição:  é preciso encontrar nos nossos corações o amor, ou fingir que o encontramos. Descobri então o meu coração no lugar certo, sei onde está, basta-me. Desejo.o a todos, mantenham o coração em algum lugar fora do peito.

Bom Natal!!!

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Aquário: Hannah Arendt entrevistada por Roger Errera (1973)...

Aquário: Hannah Arendt entrevistada por Roger Errera (1973)...: Arendt e a força dialogante da sua reflexão: A comédia trata de uma forma mais séria o sofrimento humano que a tragédia. Ficamos ofendidos com o riso,  mas Eichmann é um palhaço e é um carrasco. Faria hoje 108 anos.

domingo, 12 de outubro de 2014

o nome da rosa






























Como te chamas Rosa?
esta pergunta substitui na minha mente
ocre o que não devia. rosa. qualquer coisa
a meio
A cerveja sobre a mesa um início
qualquer coisa
rosa
o teu bigode na minha fonte de mel
a pauta e o cinzel
essas austeras presenças imaginadas
sobre um corcel ferido
cintilam como sobrancelhas falsas

Tu não podes imaginar rosa
mas estes tempos serão iguais a outros
tempos de betume e sede
trautearemos músicas de treta
os carros estarão sempre presentes
como os dias quentes
ouviremos as patinhas ainda jovens dos animais selvagens
escapar sobre o pelo áspero do papel
onde a tinta continua a traçar o sonho mole das letras

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ligação directa


Andei repisando a faixa móbil de um desespero
sem trinco
camada de gafanhotos cegos
zumbindo
fiz  ligação directa
até à terra inteira e a Deus
sem mediação
sem passar por este ou aquele
tentei universos galáxias
mas sendo que nenhum dos inertes aprofundou
o teorema antigo que me vincava a testa
retirei.me à esfera
Oh sequestrados do sonho!
bramia o estilete verbal da Natália
mas  tinha comido ostras
lambido os dedos
atirado as espinhas para longe
(que mais me restaria?-disse)
a dor ciática  a lembrança vaga
num ar de toilette inacabado
e a foice
Fiz ligação directa
ao colo de flores brandas
de palavras abertas no orvalho.
Ofelizei-me até o rio dar duas voltas e entrar-me nas lágrimas
como uma mecha acesa.

domingo, 28 de setembro de 2014

Diatribes


II

Vi  Bishop deslumbrar-se.
Furiosa virgem aterrada
Sobre a nobre paisagem do sul,
a paisagem das carcaças crianças
que remedeiam a pobreza com a alegria.

Vi-a desperdiçar o mundo por uma frase,
mas qualquer lágrima vale mais
que um magnífico tratado de ergonomia sentimental.
Tomamos sempre partido pelos que sofrem.

Arrogância talvez futurologia
Consignada à assinatura autoral
Bebo-te Bishop.
Alimento-me dos ácaros da tua roupa
Da linha escura entre a unha alada
E o sabugo
Alimento meu corpo fidalgo
 meu corpo ritmo de samba
Adiado
na história da tua imaculada concepção.
Também em ti houve o milagre
Sem sémen
da concepção virgem.
O rio não pára.
São assim mesmo as regras
Da narrativa

III
Atiro-te a primeira pedra
Poderás ripostar
Andei de marcha atrás na estrada recta
Até te avistar
nua ou ensonada
na cama pomba onde muitos espreitaram
mas nenhum rolou a carne em sangue
sobre os lençóis muralhas

Tu aí, ensonada ou nua
Tanto faz
Abrindo a boca rosa
Sobre a arcaica humanidade de pinóquios falantes
(Senhor, livrai-nos do mal das palavras!)
Tu
Ensonada ou nua
Tanto faz
Sobre a mágoa do meu corpo
Caminhando sobre as águas
Tu em mim sobre mim
Ou nós ou eu só

sobre as águas.

ainda sem nome

Interpreta-me mal
Eu não consigo respirar sem o traço limpo da esperança
Entendo que cada uma das frases já feriu de morte uma dor
E voltou a feri-la por a ter esquecido ou ignorado
Somos culpados mesmo do esquecimento, vê
sempre foi uma disposição
aceitar que a água não pode lavar
Nem o esquecimento apagar.
Caminho onde há guerra.
Caminho onde a guerra começou.
Primeiro o desentendimento preparou tisanas,
depois, serras de arame.

Deus nos livre de pensar
Encontrar a liberdade plana
De uma frase abandonada
Uma que caiu entre tantas
e do chão testemunhou
O dilúvio do sentido
talhar,
 madrugada dentro,
tábuas de uma ponte
que nunca concluiu

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Fausto A Guerra é a Guerra

Concerto fabuloso ontem nos jardins da Torre. Fausto always!!

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Comunicação e fingimento


Anna Magnani
No palco a repetição dos gestos, das frases, dos olhares, até dos sentimentos, é intencional, armada antecipadamente, pensada como rede artificial para apanhar o peixe espectador.  Arte de representar a vida escolhendo dela o que se quer. Generoso, o actor entrega-se  à personagem criando por momentos uma nova vida,  oferencendo-a aos que ali estão fazendo-os viver de novo,voltar atrás, fechar os olhos, imaginar. Actualmente, o Teatro reflecte o mundo social de indivíduos muito preocupados com a autenticidade, o fingimento é de evitar, só que em teatro o toque, o passe de magia, é ser autêntico no fingimento. Helas!!! Há portanto  uma pedra na linguagem da representação, os actores olham-se narcisicamente, não esperam convencer ninguém, exibem a sua arte, pela arte. Ora a Arte é sobretudo comunicação, falha a comunicação e falha a Arte. Saudades da Magnani. Volta! Estás perdoada!!

domingo, 22 de junho de 2014

Miguel, aqui te choramos.


Tu não perguntes ( é-nos proibido pelos deuses saber) que fim a mim, a ti,
os deuses deram, Leucónoe, nem ensaies cálculos babilónicos.
Como é melhor suportar o que quer que o futuro reserve,
quer Júpiter muitos invernos nos tenha concedido, quer um último,
este que agora o Tirreno mar quebranta ante os rochedos que se lhe opõem.
Sê sensata, decanta o vinho, e faz de uma longa esperança
um breve momento. Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo:
colhe cada dia, confiando o menos possível no amanhã.

Horácio

sábado, 21 de junho de 2014

A sombra de uma mão 
limita o espaço 
entre a última letra
e a claridade risonha do papel

quarta-feira, 18 de junho de 2014

sábado, 14 de junho de 2014

Freud disse bem.

"Expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo facto dos regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de um certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões."
Freud, O mal estar na civilização

BINGO!!!
O Chicote ou a ameaça parecem ser as únicas formas de levar as massas ao trabalho pois argumentos são impotentes contra paixões. Depois, para disfarçar a imposição violenta, dão-nos circo. Grandes espectáculos para adormecer as dores. Estaria tudo bem se não estivesse tudo amordaçado sob o manto de um despotismo encoberto. Abram a brecha e solta-se a besta. Esta técnica sem dúvida que deu resultados na produção de melhores condições materiais (para alguns!! acrecente-se) mas na justiça e equilíbrio das relações humanas, à escala global, estamos na mais genuína selvageria.

domingo, 8 de junho de 2014

ETNA


É verdade que as gatas têm três cores e os gatos apenas duas. Também é verdade que um gato não é um cão, não ladra, por exemplo, mas há uma verdade melhor a revelar:  a graça, a fidelidade, a perseverança, a ternura. Dessas qualidades se faz um amigo. Um amigo sólido. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

capicua



Numa  certa altura da vida falta-nos tempo, não porque temos muitas coisas mas porque somos mais lentos  e ainda desejamos muito, como se nada nessa lentidão nos fosse familiar. O motor, a força tempestade,  entrou em desaceleração e a percepção desta súbita mudança faz-nos querer chegar a todos os lados que o desejo laço tinha preguiçosamente adiado. Antes de parar, de parar definitivamente. Dentro de mim há também uma figura absorta, uma marioneta  a que temos de puxar pela mão porque se quedou embevecida pela luz do próprio tempo a passar, assustada pelo absurdo de poder parar, como quando alguém corre atrás de nós com uma arma e o horror prende-nos as pernas, não conseguimos fugir, uma espécie de torpor hipnótico, talvez, um rodilho de silhuetas mudas seguram-se no limite. Os meus dois: o que observa espantado um outro mergulhado no pântano luminoso, no extravio absíntico da languidez da queda. Um tem  pressa demais e  o outro, nenhuma.



domingo, 4 de maio de 2014

The Killing: Crónica de um assassinato




Esta é uma série que se vê religiosamente, a terceira temporada passava às terças, 21.45 no AXNBLACK e nunca um local no sofá foi tão ansiosamente aguardado. De facto,  as americanices policiais deixaram de me seduzir, desde os tempos de uma antiga série, que pouco tem a ver com esta: "Modelo e detective".  Eram todas muito profissionais e previsíveis, com retratos psicológicos estereotipados e recursos ao sexo constantes e repetitivos. Esta lavou o prato dos condimentos enjoativos, veio da Dinamarca e responde sem mácula ao que se espera de um policial: acção, lógica e mistério. Embora sendo produzida em 2007 só por cá passou, a primeira temporada, em 2012, o atraso é corriqueiro mas inaceitável, pergunto-me porque temos de aguentar horas de séries americanas sem interesse e  esperamos 3 anos para poder ver um produto dinamarquês de qualidade notoriamente superior. Andanças do demónio certamente. 
A acção passa-se em Copenhaga, a heroína é Sarah Lund, uma inspectora da polícia obcecada com o trabalho, hermética, pouco emotiva, persistente. Nela se concentra a investigação de um assassinato, com avanços e recuos, erros e intuições espantosas. A rede da trama é larga e envolve famílias políticas, pessoas solitárias e grupos de pressão. Um dos factores originais é exactamente esse, a dinâmica entre a pessoa e o grupo, demonstra de forma convincente como a vontade e as vontades, os interesses e o desejo de verdade se podem articular sem que haja um protagonismo redentor de qualquer uma das personagens, todas, por momentos, são influenciadas pelo grupo onde agem e simultaneamente teimam em ter os seus próprios caminhos, mesmo contra todos, numa espécie de alternância caótica em que as consequências de cada acção têm desfechos para além do que pode ser antecipadamente previsto pelo pensamento do grupo ou de um só, como se cada uma das acções ao chocar com outras vontades nos conduza por meandros inesperados. Estou triste por ter acabado a terceira temporada. Neste deserto televisivo de novelas e produtos para consumo instantâneo, uma janela onde o barulho das gentes não é só ruído, faz falta.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Coimbra antes da Páscoa


é suposto admirar este lugar a norte do meu apartamento de três assoalhadas nos subúrbios da grande capital; esta cidade esfingica de secretismo e história, de capas negras e sabedoria. Coimbra reagirá certamente mal a este odor pequeno burguês, que lhe fareja o rasto escondido, este halo de visita turistica sem guia, entre máquina digital e contemplações embevecidas. Ela que foi cantada pelos barbos mais sérios nas curvas do seu mondego triste, nas arcadas e escadarias dos doutores,  na eloquência dos seus manifestos onde o regime começou a desfazer-se. E se não fosse o seu passado anti-fascista, teríamos Pedro e Inês, os amores e segredos, a sua tragédia. Talvez estes novos tempos de números e vacuidades clubísticas a tenha desolado e amargado o vinho dos toneis; hoje Coimbra parece-me muda e expectante, só, cenário de uma movimentação a que é alheia, tumular como um velho correndo a guardar os seus pergaminhos e tesouros com a chegada dos vândalos. Há almas assim que não se dão logo, ocultam-se num ponto recuado onde ficam à espera que desistas e te vás. Assim deve ter acontecido, não tive tempo para bater forte com os pés no chão e abrir a gruta, faltou-me ou esqueci esse dom, o dom da palavra que desvela as pedras.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Arsenal



Glória aos Vândalos

Aos tártaros

Aos sândalos

Aos mártires robustos do apocalipse dos tesos

Às varinas, aos mágicos

Glória soturna e franca

aos Fantasmas ou rainhas santas

Permeáveis à treva mas também

Entusiastas da plebe

Eurásia

Eufrásia

Glória Tomásia

Entre nós a máxima a genuína transumância

Aforística

Ribeira Odalisca entre frase

Suástica

A bomba pomba rasurada

Sobre um Sol tombado com mosca

De plástico

Cartolas gigantes

Na Câmara ardente dos génios

Moribundos fonemas

E Ficção

Ficção a rodos para os presidentes

E para o Povo

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Paródia, abril.


como as praias, os bares são testemunhas da passagem do tempo, a vertente Saturno a funcionar para quem vive por fora do tempo no pensamento e no tempo pelo corpo tem uma tendência obsessiva de marcar a linha sinuosa do antes e do depois, precisa de elaborar um cardápio de lugares onde possa fazer o jogo da Glória pra vida. casa 1, casa 2, cada uma como uma imagem e uma sensação particular inscreve-se poderosa na lembrança para poder parar o tempo ou para o compreender nos fotogramas dos momentos, nas pequenas fronteiras bem delimitadas de espaço tempo. Agora, Abril, o bar Paródia. As margaritas, o cinzeiro do Bordalo Pinheiro cheio de pontas de cigarros até ao filtro e o timbre abafado das vozes, das que se movem como arabescos no éter, das que se deixam apanhar amorosas, na teia dos desejos. Os bares, como as praias, ritualizam-me, amedrontam na sua exigência de cenários perfeitos mas vem deles ou de nós também,  o fluir da dolorosa e fina mancha de prazer perdida e retomada não sei bem se no gosto de desmanchar palavras, se no ponto de descobrir formas, de as imaginar entre o quartzo meio negligente da luz.

domingo, 6 de abril de 2014

Vic e Flo viram um urso.



a sala compôs-se, era ainda dia, a textura do filme , a sua coloração amarelada cumpria a do ocaso como algo antigo, uma fotografia velha, quase o mesmo para a escolha dos rostos, para os movimentos da câmara, lentos, pesados, inertes, opacos, expectantes, e os diálogos crus, ou de uma estranha poesia, quão estranha quanto assoma de uma realidadde que parece que a esqueceu em definitivo e para todo o sempre. Árvores e pessoas,  um estrebuchar dos corpos contra a fatalidade da  natureza nos ligar simetricamente à morte e à vida, carregando um estigma, o que somos  resultado do que fomos, o passado desenha a linha do inevitável para quem vive. O amor brotava do seu desespero, do desespero das duas mulheres, forte mas frágil, diante de uma lei implacável, uma impossibilidade de fuga, o amor redime e dá sentido mas abocanha-o o absurdo. No absurdo do mundo nada é sagrado, nada está ao abrigo da voracidade dos homens e das plantas de transformar a vida em morte.

terça-feira, 4 de março de 2014


parece, sinto isso, as palavras emigraram, foram todas para um sítio e lá ficaram cortando amarras com o passado. a escrita minha amiga mais constante e duradoura, tece artimanhas de escape, embora a frase com amiga tenha um odor piegas de confissão um aparato de trivialidade, minh'amiga. corresponde a uma certa forma de viver estes 54 anos.escrever todos os dias, escrever o que faço, escrever o que disse, escrever quem amo. não me orgulho nem me desprezo por isso, há uma superfície lisa como um espelho, incólume ao tempo, aí onde cada um é, e volta a ser a todas as horas, esse espaço ou ardor ou labor pesa. não poderia ser de outro modo, as razões só servem explicações,  para quê explicar? cada frase que escrevemos explica-nos mil vezes e apaga-nos. não quero explicar mas fazer uma pausa. restringir para tocar o intervalo onde as recordações são apanhadas como estranhas, seres fugitivos e incaptáveis. hoje dia de carnaval, muitas coisas acontecem ali ao lado nas redes sociais e no mundo também embora quase todas nos sejam invisíveis, acho que nos habituámos mal a pensar que podíamos aceder ao principal, a facilidade adormece e enjoa, agora.

foto Edward Weston

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

pormenor


Radiante foi ver o céu hoje, laranja, roxo, rosa, azul, havemos de nos alegrar com os raios de sol e com as vagas do mar,com as azedas no campo e com as dunas da praia,  a natureza tem uma grandiosidade que se admira como coisa antiga cujo eco perdura, agora que a humanidade perdeu de vista os grandes gestos, a generosidade sem condições ou a verdade sem omissões. Organizamo-nos como formigas cegas, enterrámos as cigarras. Temos líderes como os cães têm pulgas e o resto é mar, é tudo o que não sei contar. 

A pintura é de Courbet

domingo, 9 de fevereiro de 2014

tempestade



 
Porque será que as tempestades têm nome de pessoa se as descrevemos à régua e ao esquadro? Ondulação de 11 metros, ventos de 130Km, leito dos rios cresce 6 metros, população e orla marítima em estado de alerta. Lembro os quadros do Turner, as vagas, os relâmpagos e os homens indefesos e arrepio-me desta forma de transmitir a informação tão alarmista e  cinzenta. Por detrás da pretendida ciência dos números há o resgatar da identidade da coisa natural, a neutralidade da descrição é um cavalo cego, não há neutralidade, há só pretensão e uniformidade. Como se os números nos dessem a ilusão de controlo e de conhecimento. Nada. Os números não são sinónimo de domínio coisa nenhuma, são só sinal de falta de ideias, de falta de poesia, de falta de grandiosidade na descrição. Esta omnipresença dos números é tão ilusória como manipuladora. Eis a tempestade: os ventos assobiam nas frinchas mal vedadas das janelas, o recolhimento da noite transformou a tempestade em som, arabescos de árvores a bater contra os vidros. E nós reinantes de chaves à cinta encolhemo-nos no sofá, deixamos os olhos crescer para o que a noite não deixa ver. Stop

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A força bruta do capitalismo selvagem


Já vivemos o suficiente para antecipar consequências de certas tendências. não é preciso ser monge para intuir o que nos espera, é mais de pistoleiro  pôr-se com caçadeira de canos cerrados aos tiros a tudo para afugentar o mal estar, o salário reduzido, a falta de gosto verdadeiro. Hoje sobram indignados e esta força da indignação que escorre nos discursos prolifera por todo o lado, o meu não é excepção, esgota-se a seiva da acção, apropriamo-nos do discurso como o pistoleiro da arma, mas nada atingimos senão o esgotar da raiva ou diminui-la, a comunicação que hoje parece correr acelerada e em caudal furioso é, perdoem-me a expressão, um efeito mistificador, de facto, na realidade, nada acontece e nada depois, enfim, de qualquer forma, muda. A autoridade do discurso acabou e com ela uma forma preciosa de liberdade. 
A questão parece-me que é fácil de compreender, passa pela subversão do verdadeiro poder dos indivíduos, o poder de estarem juntos e de lutarem juntos por qualquer coisa, a desconfiança nos negócios públicos começa com as mediações da esfera privada, o privado torna-se no espaço de liberdade, no sentido em que nele, só nele, podemos  preservar-nos da uniformização e furtar-nos silenciosamente ao ruído omnipresente. A propaganda ideológica do capitalismo tem este efeito reduzir-nos ao privado, atestar os nossos lares coelheiras dos mais sofisticados aparelhos para nos entretermos no nosso labor de formigas desossadas e acabrunhadas. Presas fáceis do consumo, que vamos amontoando a um canto, nós os indignados corremos de um lado para o outro entre a produção e o consumo, entre os dois comunicamos através de aparelhos e cobiçamos outros mais virtuosos e caros para nos sentirmos seguros. A multiplicação infinita dos nossos discursos individuais dá-nos a ilusão que comunicamos para o mundo inteiro ou para uma plataforma alargada mas a nossa comunidade virtual não é uma comunidade, mas um gazeamento comunicacional, todos falam ao mesmo tempo num prolongamento do eu, um prolongamento da sua vida privada mas não para um espaço público. Presas do consumo, ainda porque a ele estamos sujeitos em todas as esferas da nossa "privacidade" invadida. deixamos de frequentar o cinema e o teatro, o café e a tasca, deixamos os rituais comunitários, as refeições, as festas. Não nos revemos em nenhum grupo, nem nos revemos no Estado, nem nos soberanos nem nos súbditos, julgamos ter poder por podermos dizer tudo o que pensamos, mas já não pensamos muito, reagimos. O pensamento é fastidioso, moroso, ninguém aguenta, já estamos noutra ainda nem sabemos qual.

Foto: Rodney Smith

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Que se proíba as praxes de vez.Haja coragem política.

Não me importa que se fale  ao abrigo da onda, que todos falem do mesmo, ou que seja mesmo pelo cansaço que a cretinice e o silêncio vençam sobre a indignação. não há que ponderar nada nem fazer de conta que a vida universitária deve ser tratada tal e tal, nestes casos em que se pode ser democrata porque não custa nada, não está dinheiro em jogo, na verdade   quando se trata de dinheiro não há diálogo nem democracia,os nossos governantes aplicam as regras da mercearia e o resto que se amole, corta-se a eito e não se pede licença. mas agora com as praxes é um "com licença se faz favor" vamos debater. Debater o quê? Alguém debateu os cortes autoritários das bolsas de investigação? Alguém debateu os cortes orçamentais às faculdades? Agora há mortes associadas a praxes, os sobram indícios de abusos e crimes cometidos ao abrigo desta aberração dita universitária, casos abafados de Alunos que se queixam, mas o governo vai debater, agora que o assunto lhe é perfeitamente indiferente parece muito respeitador das aberrações que foram criando bicho à conta da indiferença e do paternalismo. Proíba-se de vez esta palhaçada, há razões mais que suficientes, haja coragem de defender pela lei o que está correcto . 
O caso do Meco tem contornos de grande tragédia mas as Erínias da vingança, estas mães que clamariam sangue para restituir o equilíbrio que foi destruído, estão sós, esperando um golpe de misericórdia, contemporizando num inexplicável e medonho caso de morte simétrica, seis, todos os participantes a morrer enquanto se safa um chefe de praxe, que faz voto de silêncio. Quem restitui o equilíbrio? Nada, parece só sobrar uma inócua revolta. o que não deixa grande espaço para acidente, por ser tudo demasiado simétrico. Quero eu dizer, que o acidente é sempre qualquer coisa de que se fala logo com espanto mas que se compreende num quadro  circunstancial, enquanto aqui está tudo para compreender, tudo para explicar, adia-se a investigação, a coberto de quê? Quanto às praxes já aqui me apeteceu vomitar sobre este quebranto e esta aquietação das instituições para proteger estes rituais macabros. Escrevi sobre isso enquanto as minhas sobrinhas declaravam alegremente que andaram a rastejar e a comer alho cru a mando dos "padrinhos" e o nome diz tudo.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Foz do Arelho, Dezembro de 2013

O inverno do meu descontentamento

Estive três dias de cama com gripe, gripe dos homens não das aves. Se fosse das aves diria, não há aqui qualquer pudor de espécie, mas não foi, foi gripe versão para humanos de boa vontade. Gripe para gastar a boa vontade de qualquer idiota. Pois neste exílio de Benurons e cefaleias, um facto benigno ocorreu. Partilhei a humanidade, da qual fui temporariamente apartada, na horizontal do meu sofá, vendo compulsivamente  TV, com o gato aos pés e os lenços de papel por perto. Há que discorrer um pouco sobre este facto de passar três dias a ver TV, sendo que maior parte do tempo estava meia senil de febre. Primeiro dado: Vi um bom filme, entre três ou quatro de que já nem me lembro: “ The Master” do Paul Thomas Anderson. Trata o filme da mistificação das seitas que foram surgindo a eito para o  final da segunda guerra mundial.  Desvario de aldrabices e  ignorância, uma destas seitas intitulada  “A Causa” acaba por ter consequências positivas sobre um desgraçado de um espécimem horripilante que no filme dá pelo nome de Freddi ou Fred…cujo único prazer e desejo na vida era poder estar com uma mulher, isso mesmo a guerra lhe tira, "A Causa" retribui-lhe e vemos, no fim do filme, imagens do seu calvário destruído, numa queca com uma moçoila algures nessas terras americanas cheias de bonés e dentes cariados. O filme conduz-nos e não se apresenta de fácil desfecho, o que só por si, é uma bênção. Um dia, depois do inverno passar, voltarei aqui para vos falar do The Master, porque sim, porque seria bonito.
Mas voltando à TV. A Praça da Alegria, gostei dos fios de ovos logo pela manhã;  do sorriso congelado do rapaz de serviço João Baião; dos olhos verdes da Tânia Ribas de Oliveira  e dos enchidos de uma terreola a norte para onde o entrevistador se deslocava de samarra e chapéu de feltro e de onde saíam grandes  baforadas de fumo cada vez que abria a boca. Por último, nas Notícias, recordo os meus confrangedores irmãos de gripe enchendo as urgências dos hospitais como aves de aviário enchem os bebedouros de penas, verdadeiras penas estas, e um bebedouro (esta comparação é imbecil), a conta gotas,assim se fazia a notícia.

A imagem é um fotograma do filme " The Master" com o Joaquin Phoenix numa pose impressiva.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A troca

Há palavras incómodas que podem fazer-nos enrugar o nariz se as aplicarmos às relações humanas. Trocar, por exemplo,  trocávamos cromos como outros antes de nós trocavam cestas por sementes, trocamos vontades, trocamos o que temos por aquilo de que precisamos. A palavra servia para coisas mas não para sentimentos ou relações. Claro que não podemos trocar sentimentos mas a verdade é que os alimentamos pela troca de mimos e atenções, um sentimento não é uma aura autónoma e prevalecente, é , como tudo, algo com necessidades. Habituamo-nos a pensar de uma certa maneira de acordo com um código moral tacitamente aceite mas muitas vezes esse código não corresponde a nada, está desconectado do mundo. Na amizade e no amor não deve haver troca, diz-se, "a troca está associada a espírito mercantil e não há deve e haver em relações espirituais como o amor e a amizade" diz-se. Todos estes tour de force me parecem piegas e inúteis. A troca corresponde ao mais vital dos impulsos humanos, é com aqueles que estamos próximos que queremos trocar coisas, queremos dar mas também que nos recompensem, que nos dêem em troca, se assim não for a a amizade e o amor podem existir enquanto sentimentos mas começam a ter ressentimento e perplexidade, e ressentimento e perplexidade é o resultado de uma clivagem entre o que necessito e aquilo que recebo. Há prazer na troca, (hoje aparece como "partilha" que é um nome pomposo para o básico). Quase tudo se pode trocar, as nossas necessidades não têm fim e seja de que natureza forem é nelas e na sua satisfação que o prazer nos visita e um dos maiores prazeres é, sem dúvida, trocar coisas com quem amamos ou somos amigos.

FOTO: ALESSANDRA SANGUINETTI

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O estado do mar

Para sermos justos teríamos de admitir que individualmente nós, homens, temos rasgos e que somos imprescindíveis uns aos outros, esta é a boa suposição, perfeita e inatacável. Os actos eremitas seriam bem-vistos por medievais e ainda são, em certos casos, idealizados por mentes confusas com o marulhar "non- sense" da humanidade ruidosa, mas o eremita não deixa de ser, mesmo em sonhos, um selvagem irado ou um louco feliz. Se vivemos em humanidade porque a ela pertencemos e só com ela podemos fazer e falar e alterar e desfazer, sendo nisso que gastamos o labor mundano, não podemos contudo admirar a humanidade, a humanidade nos seus dados materiais e objectivos parece-nos gananciosa, destruidora e cobardolas. Veja-se os encapuçados com câmaras de vídeo filmando as ondas que destroem os carros e levam as esplanadas da costa, veja-se a mesquinhez da coisa, se fosse alguém a ser levado pelas ondas a sua exultação seria, possivelmente, ainda maior, o momento seria precioso para mais tarde recordar. Esta forma tão moderna de se esconder atrás de máquinas é a mesma mania moderna de as pôr por todo o lado para nos dar a sensação de controlo e eficácia mas que perante a natureza explosiva só nos dá a medida de uma inutilidade confrangedora, parecemos macacos cujas cascas vazias das nozes que fomos devorando tivessem crescido tanto que nos tapassem a visão, vivemos no meio do lixo dos nossos artifícios, às vezes, quando a natureza vem, vem forte, e varre de um só impulso as construções erigidas para gáudio do consumo de whisky ao pôr-do-sol com mar ao fundo, temos oportunidade de pensar e quiça perceber. Se calhar esta imbecilidade de instrumentalizar da pior forma a natureza seja culpa da publicidade. Mas, apesar dos estragos serem um aviso ou indício, como parece mais correcto pensar-se, para quem não tem negócios com o mar, apesar da majestade das ondas, a consequência destas pequenas tragédias é nula  para a mudança de hábitos, amanhã voltar-se-á a empurrar o mesmo lixo para perto do mar e,se possível, um pouco mais para dentro.