domingo, 23 de dezembro de 2012


A VIRGEM E O MENINO COM SANTA ANA - LEONARDO DA VINCI
 
 
Este quadro parece-me estranho, de facto a virgem está ao colo da Santa Ana.
 
Serve isto de mote para este NATAL,  procuremos o colo uns dos outros, como desejo não me parece mal, um BOM NATAL  para todos os que por aqui passam!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Para a Rita


Botticelli


não sei se posso desvelar a sombra
sem primeiro formar o contorno da luz

sei de forma a revelar-te quando
irrompes entre os braços luz
 minha
minha quente e humana voz
ou luz ainda

desculpa, vou recomeçar
repito-me
se me atrevesse a nomear
era incandescente
nenhum nome então
talvez  mãos escuras
na tua ausência
brutas mãos queimadas
saltem para acender
o fio emaranhado dos cabelos
e descubram
no mapa da multiplicação
arrepiada
que me fazes sentir
uma nova definição
mas hesito
como vês nada pode ser dito
fecharei os olhos sem  noite
e voltarei ao teu encontro


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

horror

 
Nicolas de Stael
 
Não me canso de olhar para estes assassinos de dezassete e vinte anos, filhos de" boas famílias", classe média, escolaridade elevada, bons alunos, inteligentes. Este de Newtown  e os outros em 99 de Colombine, na Noruega um outro, mais velho, há dois anos. O perfil psicológico parece ajustar-se: Solitários, introvertidos e megalómanos. O acesso fácil a armas de grande destruição é um factor crucial (como podem cidadãos comuns armar-se deste modo?). Depois o aspecto do mal, mal que traduzo como a incapacidade de gerar afectos positivos,  ódio alimentado por fantasias numa forma de prazer/poder experimentado,definidor. Em Columbine era evidente o gozo, os vídeos comprovam-no. Para o norueguês há também triunfo no olhar, o gozo e o controle, o prazer que deriva do poder.  Este novo assassino não era louco, se o fosse não conseguia assassinar tanta gente, há em todos eles uma frieza emocional que lhes permite matar meticulosamente, como quem faz tiro ao alvo, humanos/coisas, alvos amorfos em movimento. A supremacia que dizem sentir torna tudo justificável. Esse é o aspecto mais assustador, não haver desvario, desespero, mas calculismo, premeditação, razão. Como pode uma sociedade evoluída gerar tais monstros e alimentá-los?
A complacência actual perante os comportamentos cruéis dos adolescentes, a justificação perante repetidas  atitudes de egoísmo e violência, como se de um  produto social se tratasse, o psicopata social com o qual nós, adultos  "normais"sentimos uma espécie de complexo de culpa reagindo com excessiva tolerância ou indiferença a situações que exigiriam firmeza e dureza, é parte de um mecanismo de alívio ou compensação por males cometidos, alívio dessa culpa que sentimos por não ter educado bem, numa época em que educar bem é uma incónita angustiante e infinita. Há nestes adolescentes e jovens adultos, uma indiferença perante o bem e o mal, como se para eles não houvesse limites.  Em muitos adolescentes sinto essa falta de sensibilidade ao outro, a falta de empatia, a pretuberância do ego, em muitos casos foi somente falta de uns tabefes no momento certo. Volto ao horror da situação Newtown, nada poderá explicá-lo senão que é preciso detectar estes seres antes de fazerem o que, quase sempre, ameaçam repetidamente fazer e retirar todo o tipo de armas, com este poder de destruição, do mercado. Por outro lado, aquela mãe não se apercebe do perigo que tem em casa? Continua a manter o arsenal mortífero ao alcance de todos? As crianças e adultos que morreram exigem uma resposta e uma responsabilização.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

leviatã


A vitrine do tempo consta que embaciou. a causa remonta à redução do tempo na minúscula perversão de uma contagem. tempo em minutos e anos. percentagens. ando, por isso, avessa a números com os quais não possa obter qualquer espécie de prazer. é uma posição quiça ambígua e desastrosa mas por ser assim tirada de um rosto envelhecido, deve ter o seu valor . a cada um é dada a sua percentagem de negação das evidências e aqui a medida é livre, digamos medida a olho.
Ficai-vos pois com a serena tempestade, serena é a lonjura.
 advogo em praça pública: dai  voz à experiência

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

In memoriam Joaquim Benite

1943/2012

Uma obra invejável e um dos poucos que ousou encenar os grandes textos. Espero que deixe seguidores.  A última encenação que vi dele foi Eugene O'Neill, Electra. 
A sua presença era  Discreta, quase invisível mas a actividade do Teatro de Almada, pela sua mão, tornou-se um destino obrigatório para amantes de teatro. Apesar de arte efémera, o teatro enriquece a memória colectiva e oxigena a nossa respiração. Arte do tempo e dos homens de carne e osso.
Não me esqueço de que devo ao Festival de Teatro de Almada  a peça mais impressionante que vi até hoje: Brecht, pelo Berliner Ensemble. A peça chamava-se "A Resistível ascensão de Arturo Ui" e a encenação era de Heiner Muller. Sei que nesse momento tive o privilégio de assistir a uma obra-prima e, digo-vos, é inesquecível.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Detachment

 
Fui ver o "Substituto" num cinema de reprise, dos poucos que ainda têm cortininha para abrir e fechar, na cerimónia que é o ritual do espectáculo. Nós, espectadores da arte, sentados em pequenas poltronas para digerir o jantar, nessa noite fria. Detachment, Distanciamento, desligamento, desligar, trata-se  de nos colocar perante personagens cuja distanciação afectiva cria situações de incompreensão e raiva,  renúncia e negação. Numa escola americana com boas instalações mas com uma população de almas esgotadas, dos mais novos que não querem saber, aos mais velhos que não sabem transmitir, cada um no seu pequeno aquário de sofrimento e perplexidade é retrato de uma sociedade onde estão todos zangados, desiludidos e frustrados uns com os outros e que, por isso, desligam e, curioso, para não sofrer, para não sentir, acabam por se exigir nada, criam um vazio onde cabe tudo e nada tem valor. Os mais vulneráveis são os que não aceitam, que têm muito para dar e não sabem como ou a quem, por isso sossobram na proporção do sonho. O protagonista é uma espécie de sobrevivente da catástrofe, abandonou expectativas e sonhos,  reage de forma surpreendente,  lê melhor o que se passa à sua volta porque não espera nada e pode "fazer a diferença", sem querer, porque não mistifica, não ilude, abandonou as regras e as pretensões. Tocante é a figura daquela pequena prostituta, fabulosa actriz, a lembrar  Natasha Kinski do Tess, em versão citadina.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Por agora

 

por agora acho-me com os dias frios, especializada em andas para não esbraçejar na lama. Diagnóstico frívolo. portanto.
Serei levada a pensar na inutilidade do discurso crítico, uma pescadinha de rabo na boca, somos e usamos o mesmo discurso e as mesmas armadilhas do discurso estendem-se em cada frase, em cada exclamação vigorosa. A única atitude seria calarmo-nos , não cair uma e outra vez nesta incessante e fragmentária exposição de intenções, exceder a auto-vigilância que nos é exigida continuamente ou a consciência angustiante da impossibilidade verdadeira de, por agora, poder encontrar espaço para a transgressão, por mínimo que seja. Palavras indignadas ou revoltadas servirão mais do mesmo, contributos de uma catarsis colectiva. Porque queremos nós falar? Porque falamos a todas as horas, por todos os meios? Conto da saturação. Voltar ao umbigo, ao minúsculo, ao tão subjectivo de pessoal. Corromper esta generalização constante que quer esclarecer e só empapa as coisas em verdades sobre elas. um estado, o fim do dia, antes da noite, existem apressadas e sem contornos definidos as parcelas, o automóvel, a Lua , o arco-iris no céu. e deste texto acabado de escrever espero cinco gostos, dez seria melhor, ou nenhum.
 
foto: Rita Araújo

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

e livrai-nos do mal


abro e fecho a porta do carro, inspiro eflúvios de um ar híbrido e frio, futebol na rádio, a conjuntura europeia vai mal, aqui "vai mal" é consensual, em qualquer lugar, os ténis azuis olham-me esperançados na ressurreição das pedras da calçada, talvez renasçam notícias animadoras. No café os rapazes do lado pedem um croissant e um galão, depois levantam-se e deixam metade do croissant no prato. hoje vai ser decidido o orçamento europeu e concluo que entre todos estes factos espúrios há uma luz tremeluzente: temos uma sociedade picotada, como as senhas com canhoto, não fazemos um todo, rasgaram bem o picotado e não sabemos bem ligar as partes com o todo. Perdemos a ligação à terra e à política, perdemos a ligação social, somos senhas num mapa de números abstractos sem significado real. milhões. subsídios e desemprego. tudo dado em números. Ninguém sabe para que servem. Cada um conta com o dinheiro no bolso, e o dinheiro é crucial para sobreviver, é a única segurança, o resto conjunturas, discursos, rasgões de alto a baixo, nada que nos dê uma referência, um calor, um motivo para deixar de contar o dinheiro no bolso. Assim, desintegrado, catastrófico e sem espessura nada pode ser verdadeiramente entendido, é uma poeira que nos assusta porque não sabemos "como" , "de onde" ou "para  quê". Culpo os meios de comunicação social por esta atoarda e lembro uma frase:" a decadência social começa com a decadência do discurso". O principal meio de revolta e renascimento está moribundo de chato, repetitivo, falacioso e manipulador. Não há verdadeiramente informação, não há história, há só catástrofe e messianismo. O discurso hoje é como aquele croissant, parece apetitoso mas depois não presta e deixa-se no prato.
 
Foto: Cartier Bresson

terça-feira, 13 de novembro de 2012

greve


Amanhã algumas pessoas fazem greve e outras não. os novos tempos confundem-me mas os ideais envelhecem connosco apesar da resistência e perplexidade. Quando penso nos meus ideais de "esquerda" sobre os quais muitos vociferam contra o estado de coisas e exigem demissões, vejo-me a pensar contra eles. de facto agora não me animam estes velhos ideais,embora a "direita" também não, terei sido eu que envelheci e não eles, pode ser, dou de barato, mas permitam-me discordar, a alternativa esquerda revolucionária nunca me convenceu e penso que em grande medida é responsável por este estado de coisas.Há um discurso e uma actuação reivindicativa por parte de uma classe que não quer perder privilégios num mundo europeu com uma população envelhecida em que mais de um terço da população não trabalha e os outros dois terços aguentam as pensões desses restantes. Esta situação não é sustentável por mais injusto que isso nos possa parecer. Há que fazer qualquer coisa, a única saída é mudar. A mudança custa mas tem de ser feita. É certo que não vislumbramos como, e é  isso que nos confunde, mas sei que essa mudança tem de ser feita com todos, por isso não faço greve. Não vejo resultado prático em entupir o país e não permitir que muita gente vá trabalhar.


Deixo-vos com uma das minhas obras, a minha primeira "encomenda" de uma série de "Retratos"

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

teatro


A Companhia Maior actuou no CCB. São todos velhotes de mais de sessenta anos. O conceito parece pouco atractivo, até repugnante. Não encontramos beleza na velhice, parece-nos cada vez mais uma tristeza sem rosto, um acabar sem utilidade escondido atrás das pedras, em camas manchadas de mijo e solidões titubeantes. Envergonha-nos, incomoda-nos, sentimo-nos julgados pela nossa indiferença, por aquilo que poderíamos fazer e não fazemos, podíamos tirá-los da sombra, acarinhá-los. Preferimos então ignorar polidamente, fazer de conta, viver o presente sem a olhar nos olhos,à velhice. Daí que ver um espectáculo de três horas e meia com gente de mais de sessenta anos parece-nos tortura, como levar-nos do quente das casas com internet para o frio da escassez, para a visão apocalíptica das peles descaídas. Três horas e meia. Um palco iluminado com pouquíssima luz, um chão a lembrar ferrugem, folhas mortas, Outono e de repente, o desmentido: há  beleza dramática nas rugas. na palidez da pele, no movimento vagaroso, na senilidade teimosa. Há fulgurâncias imprevistas num gesto meticuloso, numa voz gasta e grave, num gemido, há sensualidade numas pernas que tentam ensaiar um tango, num corpo abatido pela quietude, pressentimentos da voltagem do tempo, da gravidade e da graça, convocatória da vida. A história da vida pessoal de cada um, sem nada, depuração, a cruz e a redenção do tempo.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

lucidez


Ser lúcido! Não ser lúcido? lenga-lenga. Não existe tal coisa como a lucidez. Depende da ficção dominante, assim descrever uma realidade dominante significa lucidez,  sendo aqui dominante equivalente a convenções aceites por um certo grupo dominante, intelectualmente dominante.Mas há verdade. Há um universo empírico verdadeiro, assim como há um universo psíquico verdadeiro. Havendo lucidez no que concerne a cada um deles, quando o restringimos. Lucidez será tacanhez, então.
Desconfio de quem advoga pela lucidez, desconfio de discursos de intenções. A verdade empírica de estar sentada a escrever isto, não pode ser separada da verdade psíquica de achar qualquer bom ou mau sentimento nisto de estar para aqui segurando nenúfares e reequilibrando economia e prazer. Não me esqueço dos carros lá fora, do cortinado estático e pesado, do cabelo que cresce mais na Lua cheia e de ser graduada em filosofia. Na realidade destes factos não há lucidez nenhuma. Só a crise e o desemprego, do resto não é permitido falar pois corresponde ao etéreo. Ajoelhemos então, olhemos as mãos e respiremos na tranquila inocência do nosso desespero.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

arena

Ontem, pela primeira vez, estive muito perto de um estádio de futebol. Contornei-o, do lado de fora, ( ainda são 15m a andar), depois a elevação, os ferros em altura,  as grades, as frinchas por onde se espreita o verde da grande arena. O majestático da estrutura acorda ecos das grandes catedrais góticas, não parece haver dúvida, estas são as novas representações da fé dos homens. O hino  da claque do Benfica dos "No name boys" tem um verso apologético: "Quero morrer no estádio!" mas dai a Roma o que é Romano, as arenas de Roma, o Coliseu, a semelhança é evidente. Os cristãos lançados às feras, os cristãos morrendo para erigir as grandes abóbadas das catedrais. As imagens convocadas de grandes delírios, martírios e corpos extasiados e depois a pedra a testemunhar, fria, inerte, abrindo as portas para a perpetuação do ritual. E se fechassem a arena? a cadeado, digo, e a vendessem à peça?

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

In Memoriam Manuel António Pina


Café do molhe


Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.



É uma dor que, quando se escreve assim, também se morra. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

oficio de escrever

De todos, este foi o ofício que sempre quis ter. Mas nunca me lembrei de inventar personagens e histórias, a criação de um mundo paralelo e plural nunca me interessou na escrita que desejava, o ofício transpirava-me a confessional, solitário, escavando  dentro de emoções, sem artifícios técnicos. Queria falar de sentimentos,  essa amálgama bravia que a própria linguagem parece não dar conta. Queria inventar na linguagem e não servir-me dela. Não sei porque quero isso, o imaginário do escritor à sua mesa de trabalho com a máquina de escrever, sozinho frente aos elementos, lutando contra o génio invisível da passividade, do cansaço ou da indiferença, fumando e bebendo, convocando pela sua entrega uma verdade, crua, a sua verdade, aquela que resulta do acto de criação, era a imagem perfeita onde todo o mal e mesquinhez humana poderiam ser resgatados. A Arte é de todas as manifestações a que mais se aproxima do absoluto, sei-o bem, já experimentei esse fulgor, essa tragédia grau zero da reconciliação. Faltou-me talvez a coragem de ir até ao limite, de crer até ao fim. Tive medo do mundo ou de mim, não sei bem, recuei. Não há grandeza no recuo, mas pode haver outras formas de retomar o fio deixado para trás, não acredito em vocações falhadas, embora a ideia possa seduzir por momentos, dar alguma dignidade ao que nunca chegou a ser.  Também não me interessa saber porquê. Todos os dias me convenço que ainda pode acontecer, penso ser essa a estratégia dos falhados,  prefiro chamar-lhe esperança. Há luz que baste neste céu para todas as formas se revelarem.
 

domingo, 14 de outubro de 2012

Compra e venda a prestações



O mercado automóvel, como agora se diz, o mercado automóvel.
Sábias palavras, escorreitas, abrangentes, pasteurizadas, leves, ordenadas, confiáveis. Imagine-se uma roulotte que vende cachorros quentes à porta de uma discoteca da moda. Imagine-se o tipo da roulotte a deixar de vender cachorros quentes e passar a vender  automóveis. Mudança de cena, espaços amplos, a camisola interior dá lugar à camisa e gravata, mas a pinça na mão para satisfazer o cliente e  o dinheiro, são o mesmo, só que aqui falas de muito mais, dinheiro, claro.
O cliente é rei, tem sempre razão desde que aceite as regras: podes escolher recheio, a salsicha nuazinha e as opções. A diferença está no preço: as prestações são a saída inteligente, é assim porque sim... tens de hipotecar, aí a seis anos ou sete, podes assim escolher opções mais luxuosas porque dividido por  70 prestações nem se nota. Bato palmas porque tou a ver a ideia: vender o sonho. Sobre quanto vais amargar para o pagar não se fala. Não interessa.  Enquanto a roulotte te proporciona instantes de prazer guloso com consequências previsíveis a curto prazo, estes aqui, os do mercado automóvel, fazem-te crer que precisas do que não precisas e agarram-te durante uma parte importante dos anos que te restam para viver, sugam-te, vampirizam-te, deixam-te sem pinga de sangue e depois quando olhas para a lata velha finalmente tua, descobres que não anda, e tens de lá voltar. ao mercado.

domingo, 7 de outubro de 2012

outono


ando na garagem à procura de um livro, muito pó, outubro também, os barcos apitam no rio.
 Seria uma manhã de luz, há espaço nos olhos para o fio a prumo da luz de outubro caber. Não sei praticamente nada, armei-me de coragem para deixar a seguinte  mensagem  no caminho: Aqui, no apartamento sem terra, espantada no ar, engoli o anel e abracei-te.
(de todas as palavras só a a última faz sentido).A cidade agradece, que gente no ar possa escrever, modo de ganhar terra, retro escavar em sonho terrenos baldios à imaginação,
ou ainda para poder colocar nas folhas caducas das árvores, a melancolia: espécie de sonho encriptado.
procuro um livro em apartamento.stop. outubro. stop. os meus braços a deslindar o novelo do rio, ou tu, encostada ao dourado lasso do mês.stop
 
a foto não sei de quem é 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

gatos


O que têm os gatos de tão doidamente divino? Compreendi finalmente. São perigosos felinos num tamanho em que podemos apreciar a especialidade feroz sem temer as suas garras. Com as pessoas o mesmo me é dado admirar: adivinhar a sua ferocidade sabendo que dela decorre, por sua vontade, graciosidade.

sábado, 29 de setembro de 2012

BLOGUES? Por onde is?

 
ASHLEY JUDD
 
Antes de ontem no telejornal falaram de dois blogues. O mundo dos blogues em prime time é, no mínimo, raro, fala-se demais e mal do que todos estão fartinhos de saber e o pudor ou a náusea me impedem de repetir. Mas o sucesso mediático continuou, a mesma rapariga fitava-me quando cheguei à FNAC,  entre a leitura arrepiante do Caio Fernando Abreu, ena pá até faz vertigens, e a sensação pesada de não poder comprar mais livros, por uma questão de higiene  (poupo-me às explicações). Afinal é verdade, alguns levam-se a sério, os novos empreendedores, as novas oportunidades, música para os ouvidos dos cegos funcionários públicos. A pranchada da rapariga de trinta e tal anos que fala de sapatos e de bouquets de flores. A cara dela e a prosa vendem como limonada gelada em tardes de estio, o blogue tem 35.000 visitantes. Ena! Para além de ficar morta de inveja, porque a desgraçada abandonou o emprego e deixou-se seduzir pela grif, a minha vingançazinha é a desta prosa  saber de antemão que de grifs não percebe porra de nada. Mas tenho de  admitir, entre os 25 deste ridículo espaço e os 35.000 da outra... em termos de sucesso bloguístico abri falência, podia dedicar-me à domesticação de lulas gigantes, se elas quisessem claro. Vou pensar nisso ou acabar de dormir.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Santiago



Santiago. São onze horas da manhã e a praça da catedral está pejada de turistas e de Sol. Lá dentro exige-se silêncio e respeito, os andaimes não ajudam mas a força e a grandiosidade do monumento impõem-se. Alice vem entusiasmada de ver tanto santo e tanta figura de pedra, traz os seus conhecimentos para a praça e repete o que leu numa inscrição: "O caminho da fé é o camião da luz!". Pois... trata-se de muita mercadoria!

foto: Ana Araújo

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

num estado de sítio

 
Quero falar da tristeza que sinto em relação ao estado deste país. Da afronta que todos os dias temos de engolir, este mal cansado, esta besta malfadada da crise, espécie de cobra paralisante a engolir tudo à volta, a camisa esfiapada, num pau. Aqui onde erigimos betão, fecharam as portas e instalaram o estado de sítio, a vigilância cuidadosa e eficaz. Aqui não conseguimos ser livres, ser livre parece ser supérfluo, ser justo irrelevante, a dignidade está no vinco das calças ou no sapato alto. Cuspir o veneno para longe,  antes fazia sentido, deitar a língua de fora, ou rir ou chorar, tudo o que antes fazia sentido, agora não faz, não faz nenhum, nada. As palavras são redundantes e o seu efeito nefasto, repetem-se numa unanimidade muda, o discurso é uma anestesia que deixa um inchaço grosseiro nas bochechas. Este é um estado totalitário, um  estado de rasura, de subserviência.

sábado, 1 de setembro de 2012

Gerês 2


Cada "paisagem bela" é um fardo. oiço-a exigir-me: " Vá, agora apanha-me, eterniza-me, faz-me tua!" Eu não sei, continuo a considerar esta tarefa impossível. Afadigo-me um pouco e depois deito às urzes a exigência, fico com a impressão. a impressão, da impressão, da impressão. Há mulheres como eu, e homens também, de máquina a tiracolo e sequências fugazes de impressões destas.
Então, arrumas a peça de artilharia pesada, inocente usurpadora que  rouba coisas das coisas, e aí, o grilhão solta-se, ao correr do raro instante, acontece: a beleza liberta-te.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Gerês 1



Gerês: Qual paisagem?

terça-feira, 14 de agosto de 2012


"Lançou um olhar à sua figura no longo espelho; mas a imagem falhou, manteve-se inequivocamente familiar e usual.Ultimamente uma emoção particular acompanhava o momento de se olhar no espelho; subrepticiamente não era raro um estranho emergir: um novo eu.
Tinha acontecido duas ou três vezes, a primeira o Verão passado, no lânguido fim de uma tarde ardente; tinha vindo de um jardim saturado de silêncio, a casa estava às escuras; melancólico, solitário, inquieto -  chave de uma expectativa. Para quê? esperando- Por quem? A casa estava deserta."

Rosamond Lehmann, Invitation to the waltz, p.13


quarta-feira, 8 de agosto de 2012

à minha amiga Xaninha!


Obras de Verão: Quadros para celebrar pessoas de quem gosto (muito) a pretexto do seu aniversário.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

pequenos apontamentos em agosto



1. A Gulbenkian poupou dinheirinho  extinguindo a Companhia de Dança e investiu-o mais à frente na contratação de Seguranças, vulgo Guardas, os ditos não dançam nem ficam bem no retrato, mas afastam qualquer curioso e dissuadem a pesquisa avulsa. Como fundação para a investigação fica-lhes bem o tom!!

2. Há um espaço simpático para vistas de Lisboa e torradas. No Teatro Taborda ao Castelo. A propósito não há quem dê vida ao teatro em Agosto, este Taborda está sentadinho sobre uma colina sem nada a mexer lá por dentro. Só mesmo as vistas mas é pouco, não há vistas que possam fazer esquecer a arte e tal.

3. Ficar sem automóvel em Agosto equivale a quê? Nem quero pensar. Nestas alturas sinto-me uma burguesa mal-passada. Vou pôr-me a estender a mão à caridade! Senhores são pés e como vos quero!

4. Contei condutores na estrada do Guincho. A tarde declinava. Se não fosse o Meste Zé ali ao lado juraria que era uma versão mais moderna e fresca do Easy Rider mas com veículos quatro rodas, se isto não faz sentido pense-se em estradas e em caminhos de ida.

terça-feira, 31 de julho de 2012

em letra pequena


penso que escrevemos para esconjurar o medo. para o afastar shoo! mas não deixamos de escrever se, desmascarada essa intenção, o medo continua e as páginas já se vão cheias de letras. então escrever é um modo de acolher brava um certo fracasso, talvez dos poucos fracassos que não nos importamos de abraçar e até de insistir.a minha geração crê na escrita, na leitura, na palavra. persegue-a mesmo se ela se acumula inútil em pó e cotão por todos os compartimentos da casa. continua a ser uma visão feliz, a dos livros, muitos e em estado de sítio, parados e transportados em pontes movediças, nas sacolas toscas ou finas do nosso ser viajante. sim, cremos nas palavras, somos possuidores orgulhosos da arte da fuga, de todas as formas seráficas e apaixonantes de nunca estar verdadeiramente em sítio algum. demorar ausências, amá-las no excesso estonteante das várias possibilidades de presença. todas em breves momentos nos montaram para as montarmos e todas por largos anos se mostram quando convocadas,  deixam entrever o flanco onde as linhas da cosedura com o nosso desejo entroncam.hei-de mostrar-te os livros que ando a ler, as memórias da minha projecção, o filme onde me poderás ver.  de formosas verdades e múltiplas traças se comporá a letra quando sobre ela te deitares a escorregar como só tu, nessa doçura sem verbo, como só tu fazes ou a minha escrita  imagina. 

domingo, 22 de julho de 2012

praia


Para além de achar que me faria bem ir a banhos, arremessar-me para a água como se não houvesse amanhã,(entretanto penso que, não sendo propriamente uma idiota,  é como me sinto metendo água por todos os poros e engrossando a fila dos insatisfeitos de calções) vou a banhos como quem vai segurar ondas na prancha semi-cerrada das pálpebras. Restam-nos as praias senhores, já que o resto flúi para debaixo da tampa do alçapão como se de vergonhas se tratasse - falo do país - deste que também não vê nada nem quer.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

fotografia

Germaine Krull, 1927

Fotografar o nu,  ver o nu fotografado é o melhor modo de compreender o tempo. O nu desenha a ténue linha do presente, corporiza o presente na sua efemeridade nostálgica  magnífica e intocável. Carne dissolvida em pequenos pontos luminosos ,a biologia deixa-se seduzir pelo sonho ou pelo desejo, nesse instante vida esplendorosa e vislumbre desapaixonado da máxima beleza e da máxima perda.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

birar a página

Hoje nas escolas fala-se em Missão, diz-se: "Tens de vestir a camisola!", trocando por miúdos, acenam-nos com uma viagem sem volta (estou apenas a repetir a fórmula da maioria e da Direcção) num destino comum contra o insucesso. O insucesso sai caríssimo ao Estado e é um desperdício de tempo e dinheiro. Temos de rentabilizar, e o lema é criar Escolas de Sucesso,  para isso todos os sacrifícios podem e devem ser exigidos aos professores porque o investimento em recursos materiais é impossível por causa da crise, ora se o investimento do Estado é menor, o investimento pessoal tem que ser maior. Este princípio neo-liberal ou liberal (não percebo bem a diferença) alastra a todas as áreas da sociedade, trata-se de eleger o trabalho como prioridade. Enquanto uns embarcam nessa viagem deixando para trás as suas vidas pessoais rarefeitas, outro ficam em terra escavando buracos na areia, procurando desesperadamente fazer qualquer coisa que os outros já fazem, o trabalho é coisa de eleitos, dispostos aos maiores sacrifícios. Este estado de coisas é fracturante para uma sociedade como a nossa, humanista. Os chineses parecem modelares, têm uma cultura do trabalho arredada da pessoalização, trabalham porque essa é a sua forma de viver, anulam-se num todo sem fracturas nem resistências, vemo-los nos Restaurantes ou nas Lojas dia e noite, sem mostrar cansaço. Mas, nós, ocidentais, não queremos. Porque o trabalho, na sua essência, é (ainda) uma forma de alienação. Poderemos responder com o fosso entre as instituições e as pessoas, sentimos que trabalhamos para algo que não é nosso, que não elegemos enquanto filosofia ou enquanto sistema económico e daí a sensação de alienação e cansaço. Poderemos responder com uma certa filosofia judaico-cristã que entende o trabalho como um castigo necessário à sobrevivência, que de algum modo é uma escravidão fora do real desígnio do indivíduo.Cumprimos o castigo com abnegação. Esta nova visão do trabalho como razão de vida é-nos estranha, mas, cada vez mais a tradição judaico-cristã está a esmorecer, a diluir-se num capitalismo religioso, fé, esperança, rendimento. Nesta sociedade que aí vem não há alternativa.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Noite de teatro: O mercador de Veneza no festival de Almada



"SALARINO - Ora, tenho certeza de que se ele não  resgatar a dívida  no prazo certo, não haverás de tirar-lhe a carne, pois não? Para que te serviria ela?
SHYLOCK - Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para alimentar a minha vingança. Ele humilhou-me, impediu-me de ganhar meio milhão, riu dos meus prejuízos, zombou dos meus lucros, escarneceu da minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo
com o exemplo do cristão? Ora, vingança. "
Shakespeare, O mercador de Veneza.

São nove horas e o átrio do teatro de Almada está repleto de vozes. Filas de pessoas ainda à espera de um bilhete que não há, tornam o espaço apertado. A peça a exibir daqui a pouco é "O mercador de Veneza" numa encenação de Ricardo Pais,  levada à cena uns meses antes no Porto. Nós os mouros ainda não a vimos por terras do Sul mas o festival de Teatro de Almada trouxe-a. Ricardo Pais é um bom encenador, arrisca, esta é a sua última encenação à frente do Teatro de S. João. O texto é Shakespeare. Há também  Albano Jerónimo a representar António e  João Reis, Shylock. Os ingredientes são mais que suficientes para elevar as expectativas. Quando começamos a ouvir o som de uma espécie de tubos de ferro suspensos do tecto ao bater levemente uns contra os outros e o palco cheio de sombras, as expectativas tornam-se mesmo muito altas. À aproximação dos actores/personagens surge a primeira impressão. Fatal a primeira impressão numa peça de teatro de Shakespeare, está nos actores: falta-lhes solidez, força, são frágeis e imaturos os seus corpos, mais concretamente a forma como se movimentam no espaço. O teatro ainda não lhes corre nas veias. O exemplo mais gritante é a beleza de Albano Jerónimo, perfeito, alto, lânguido, mas de voz incaracterística e má dicção, do poético texto da abertura fica-nos um amontoado de sons, uma falta de sentido que permanecerá rondando a sua personagem, como ave agoirenta, não percebo, nada me transmite senão cansaço. Salvar-se-á este encontro com João Reis, o único atravessado pelo Teatro, o único à altura do texto. Nenhum actor, por melhor que seja, pode brilhar sozinho, a falta de contracena amarfanha a sua tragédia e é pena, com actores à sua altura veríamos outro "Mercador". Daquele bando de jovens mancebos bem vestidos resta-nos a beleza da roupa e dos efeitos cénicos :aí o Ricardo Pais é bom, diria que é o melhor. Ainda de leve a ideia central do texto: A tragédia de uns será sempre a comédia dos outros. E não vou escrever mais  porque já vai longo este texto.


sexta-feira, 29 de junho de 2012

sem título

Enquanto são só lençóis, o peso das pernas e da barriga, deixo de voar, mas depois há aquela frecha aberta, a velocidade soluçada e o tombo elástico entre saliva, a distensão muscular, curva entre o começo e o recomeço. O corpo segura atrás de si , uma parte especial do corpo, segura atrás de si, rabias, histórias, coágulos de sangue, mitos,   calor húmido, esse calor que cria  água, aí teria de me perder ou então deveria haver uma estrada para continuar a escrever, de novo: golfadas e esfinges. Como pode ser esfinge essa frecha aberta? É. Tirei-a do deserto e ela veio pelo seu pé arribar onde eu já me tinha acotovelado para ganhar espaço à morte. Ficou ali, no átrio, e são os meus braços que agarram e suportam as suas antiquíssimas colunas.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

coração!


O coração é um órgão de fogo. Queima e arde. Tudo o que se faz com o coração agita-se tremulamente no ar, escoiceia, gasta o oxigénio em volta, intoxica, deixa um torpor nos membros, uma agitação contínua, um desenrolar de parábolas na cabeça, momentos e enxames de sensações contrárias. Há que voltar a colocar nele a ordem e a resistência começa: como direcionar o fogo se os limites se diluem? Se quando os colocamos logo sentimos arder noutro lado? Não nos inclinamos naturalmente para a destruição. Não. É para a natureza que falamos, e ela reenvia-nos o eco de uma voz secreta, de um desígnio. Se ardemos é para depurar, diz-nos a natureza, se custa, é porque também o álcool sobre a ferida custa mas sara. De novo a resistência, esse álcool abre outras feridas, se esta sara outra sangra. Inclinamo-nos para o tempo, nele descansamos a cabeça. Que venha o tempo diz a natureza, e tudo volta ao princípio e não há tempo mas uma irrupção de fogos que não cessam. Coração, coração se tu soubesses, se tu pudesses resolver-te a fiar, a costurar, ou se tu soubesses cantar em vez de gritar, talvez o teu canto pudesse seduzir as pedras, talvez o teu canto embalasse o medo, talvez o teu canto restituísse ao fogo o seu perdido dom de encantamento.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Música das esferas


Pitágoras afirmava que estrelas e planetas  eram pequenos orifícios na abóboda do universo. Ao moverem-se, como nos furos das flautas, iam tapando e destapando orifícios, e daí a origem da música. Poderíamos compreender matematicamente o seu som e e até imaginá-lo. Kepler, místico e astrónomo, 2000 anos depois, chegou a arquitectar a partitura dos sons dos planetas nas suas elípticas. Hoje a NASA confirma, há mesmo música no universo. ouça-se Urano:


http://www.youtube.com/embed/80Ngl2RY8sA"

Mais, aqui: http://youtu.be/MWDB_1Ajq20

quarta-feira, 13 de junho de 2012

PROMETHEUS

Pontos prévios: discutir os oito euros do bilhete e o aborrecimento de usar óculos durante duas horas;congratular-me do Ridley Scott ter escolhido a Noomi Rapace para o papel da doutora Shaw: a protagonista; extasiar-me perante a força de determinadas sequências homem, fibra, músculo, orgânico, espiritual, máquina, inorgânico.
O que está em causa em Prometheus é a origem da vida e do mal, como se ambos fossem indissociáveis. A vida, não é o resultado de uma análise ao microscópio, não é uma coisa que se disseca, uma soma de partes, embora também seja, considerá-la como tal, apenas, parece poder conduzir-nos ao princípio da sua destruição. O orgânico disforme da besta, ainda me faz náuseas, e o universo à nossa escala é um sonho incompreensível. PODEROSO!!

sonho no cabeleireiro

Eram 10 h da manhã e tinha sono. Adormeci para ali sentada em frente ao espelho gigantesco tentando fugir ao olhar que perscrutava as minhas rugas como um penhasco fundo. Adormeci e não dei conta do tempo. Ai adormecer para sempre! Não, acordei naquele cheiro de ácido misturado com cola, enquanto a rapariga negra punha papelotes no silêncio do seu profissionalismo, papelote de prata, um, dois, três, quarenta, cinquenta. Adormeci outra vez, sonhei que estava na tenda de um Marajá e que tu, minha amiga, fazias uma massagem nas minhas costas depois de teres assassinado o Marajá , mas, o mais natural, era ter um cigarro na boca e adormecer no sonho; o cigarro em lenta combustão ateara fogo à tenda do Marajá, mas agora  de papelotes de prata no cabeleireiro não podia fumar. Não liguei de como tinhas assassinado o marajá, o facto era adquirido. Quis dormir, de novo, e o fumo entrou-me lento nos pulmões e enroscou-se em ondas na aorta que me dá vida e me tira vida, e quando às 11h estava pronta para cortar o cabelo e o secar com o secador, já tinha secado a fonte , qualquer fonte, e abandonada no primeiro andar do cabeleireiro deixara-me ir com o fumo ou o esquecimento enquanto os dias passaram e ninguém mais se lembrou de mim.
fotografia aneta bartos

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Cerejas

Aí estão elas, alinhadas e expectantes nas caixas de papelão do supermercado. Cerejas do Fundão, lindas, frágeis, deliciosas. Se não houvesse razões para se aninhar ao colo do fim da Primavera, para abrir os braços ao Verão, haveria sempre a surpresa de Maio nos trazer morangos e cerejas, a surpresa  deste país poder orgulhar-se de ser eleito entre aqueles (poucos!) que têm condições para as criar, como se cria um filhote de compleição pouco robusta mas de admiráveis qualidades. E, para além desta admiração profunda que me enleva a alma, reparto-me na alegria de saboreá-las e na tristeza de as ver desaparecer demasiado rápido para o meu enlevo, da taça de vidro onde cuidadosamente as pousei.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

In memoriam Bernardo Sassetti

visita ao museu

Fomos ao museu. professores e alunos. Noto as salas vazias do Berardo, lembro um museu em Espanha onde tínhamos de encontrar um buraco para espiolhar as obras, entre hordas de crianças de escola. Não há lá muito movimento por aqui; o guia é bom mas os alunos mais rebeldes torcem o nariz, não, isto não me diz nada, uma placa de ferro no chão...Arte? reparo num facto insignificante: em Belém é o McDonalds que detém unanimidade. Seja como for, a atmosfera calma, a beleza dos objectos nas suas poses expectantes, a existência de um espaço onde se exige um novo olhar ou, quiça, uma limpeza no olhar e um desafio aos nossos hábitos, só por si, teriam valido esta visita.

quarta-feira, 9 de maio de 2012


hoje, dia 9 de maio, não é dia da mãe, nem do fumador, nem da nossa senhora, nem da árvore, nem da sida...poderia ser o teu dia. apreciá-lo do mesmo modo delicado e guloso com que comemos, num restaurante chique, polvo à lagareiro. Colocar taças e cristais em cima da mesa e imaginar altas janelas sobre um mar fluvial, com fumos de barcos em partida, uma atmosfera ainda moderna mas clássica, a lembrar filmes princípio de século,  depois encostar o olhar ao lado, centrar-se no gosto aveludado do polvo e servir-se sem cerimónia, das iguarias. Não esquecer de empurrar os barcos um pouco para trás para que eles voltem a apitar na chegada ao porto.   

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Michel Houellebecq



"Às quinze horas pararam numa escala um pouco antes de La Souterraine; a pedido do pai, enquanto este atestava o depósito, Jed comprou um mapa das estradas "Michelin Departamentos" da Creuse, Haute-Vienne. Foi ali, ao desdobrar o mapa, a dois passos das sanduíches de pão sem côdea embrulhadas em celofane, foi ali que conheceu a sua segunda revelação estética. Aquele mapa era sublime; transtornado, pôs-se a tremer diante do expositor. Nunca contemplara um objecto de tal modo magnífico, tão rico de emoção e de sentido como aquele mapa Michelin à escala de 1/150.000 da Creuse, Haute -Vienne. A essência da modernidade, da apreensão científica e técnica do mundo, estava ali misturada com a vida animal. O desenho era complexo e belo, de uma clareza absoluta, utilizando apenas um restrito código de cores. Mas em cada um dos lugarejos e das aldeias representados em conformidade com a sua importância, sentia-se a palpitação, o apelo de dezenas de vidas humanas, de dezenas ou centenas de alma - umas destinadas à condenação, outras à vida eterna."

Michel Houellebecq, O mapa e o território, pág.47

Já aqui afirmei, dos romances contemporâneos poucos me interessam, volto atrás,  este apaixonou-me. Sinto agora uma pena imensa de o ter terminado e vou dedicar-me a ler o anterior do mesmo autor "As partículas elementares". Já o requisitei na biblioteca e  tenho-o  ao colo, ao meu colo. O que me apaixonou? A narrativa é soberba, e magnífica a tradução, (o próximo passo será ler no original). Mas, na minha opinião de mujique, o que é uma narrativa soberba? Pois bem, respondo já, é aquela que doseia bem, isto é, naturalmente, os pormenores mais corriqueiramente desinteressantes com a essência fulgurante das grandes revelações. Colocando tudo ao mesmo nível narrativo dá-nos o importante como uma escolha nossa, verdadeiramente aleatória ou não, dependendo do lugar que queremos ocupar nós mesmos, leitores na história. Depois escapa milagrosamente, isto é ,de forma rente e difícil, aos estereótipos, ludibria expectativas, mas, ao mesmo tempo, não decepciona, mantém viva a chama de uma tortuosidade triste, que se queria outra e até por vezes se assemelha a uma história boa, mas que não passa de uma semelhança, neste aspecto não escamoteia o valor do romance enquanto obra literária escrita por um gajo, qualquer gajo, entregue às suas próprias obsessões.
Nomearam-no original,como se fosse coisa de louco, ser original, levantou celeuma, há aspectos mórbidos, mas há humano aqui, há humano até às mais recônditas fibras dos músculos e da alma. Declaro por isso a minha total rendição!! Quem disse que o romance estava gasto?

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Fernando Lopes




Morreu o Fernando Lopes. Lembro dois dos seus filmes. Gostava da atitude. Estes tipos deviam olhar para a morte e passar ao lado. Deixa a obra, essa sobreviverá.

Vou rifar meu coração



 No Indie Lisboa, documentário sobre a canção "brega" das periferias brasileiras.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A minha viagem à Índia cá dentro

Neste verão, pensava, num escape da correcção dos testes, gostava de fazer uma grande viagem. Ir à Índia. gostava de ir à Índia. este desejo pareceu-me bem mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa de mim o temia, temia ousar um gesto largo, agora que estamos tão apertados nesta cintura à beira mar, tão vigilantes e tristes de crise, de bancarrota, de fome anunciada e de pouco dinheiro!
 A minha geração teve sorte, a história foi mãe. Quando arranjei este meu emprego de professora havia uma terra promissora, uma terra que  entrava no ardor primaveril de Abril, com educação para todos, livrarias a abrir, novas editoras, novos bares e cafés. Mudávamos e, nessa mudança, não o sabíamos há trinta anos atrás, entrávamos na euforia do consumo liberal. À nossa frente abriam-se inúmeras possibilidades, era libertador, mas agora não é, é asfixiante. Pergunto-me porquê. O liberalismo entrou numa nova fase, numa fase em que demonstra a sua verdadeira face. Competitividade. Nós por aqui ainda não nos acostumámos e, falo por mim, não me soa, aliás, soa-me a insegurança e a fraude. A produção com vista ao lucro é, no entanto, a única solução para os hábitos que criámos e para a conjuntura pesada do Estado, no entanto, terá de haver um estado para proteger os mais desfavorecidos e promover a justiça social. Um Estado com gente sem emprego e pobre e que, mesmo assim, vende aos mais ricos o que tem, não é justo, penso eu...mas a viagem à índia...como? que tarefa tem a classe intelectual, da qual faço parte, sem qualquer pretensão, neste novo estado de coisas? Pensar. Pensar alternativas. Até que ponto o pensamento pode intervir e mudar a realidade? Encontro-me assim, peregrina nestas efabulações e não sei mesmo se irei fazer esta minha tão desejada viagem à Índia, ou senão a deverei procurar aqui mesmo, nesta cintura apertada.

Fotografia daqui

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A árvore dos Tamancos 1977 Ermano Olmi




L'ALBERO DEGLI ZOCCOLI - 1977 - ERMANO OLMI


Vi-o na Cinemateca, e acordo para os seus frescos realistas e dramáticos. Certos planos lembram os quadros de Courbet ou Millet, os camponeses, e a sua dignidade inibida e, ao mesmo tempo, a sua tristeza e exuberância. Pegados aos ciclos da lavoura e da terra, como animais verticais, entre o céu castigador e os milagres redentores. De outro modo, ainda assim muito presente, os quadros de Caravaggio, os encontros do povo com a arte e um Jesus sofrido e familiar, as sombras e a luz crua e intemporal, como se, apanhada no ciclo inesgotável das coisas, se pudesse representar a condição humana crédula e vulnerável.

A narrativa oscila entre o ficcional e o documental. Há um elemento ficcional narrativo que tende para um fim dramático, aglutinador,mas não se deixa tomar por ele, abrindo o olhar à liberdade de ver a variedade de pequenas histórias que são os acontecimentos da vida quotidiana, com grandeza e mesquinhez, sem que uma e outra possam ser separadas pois são elas mesmo parte da luta pela sobrevivência.
Depois de ver o filme, percebo o impacto que teve no pós 25 de Abril e acredito na força da Arte, na capacidade de nos encantar e de destruir estereotipos, de permanecer testemunhando as injustiças brutais a que a história responde sempre, também, de forma brutal.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

filosofia a mais ou a menos

Palácio Fronteira e Alorna, no largo S. Domingos de Benfica.


A palavra escrita e a palavra dita. Qual delas é capaz de exercer melhor o seu poder? Terão finalidades diferentes? A questão ganha relevo quando pensamos na actividade docente, e esse relevo acentua-se quanto ao ensino da Filosofia. Muitos professores deixam testemunho escrito, trabalhos de monografia, poucos ganhando estatuto de pensamento filosófico. A exigência é postulada pela carreira, também pela curiosidade no conhecimento, no entanto há hoje uma certa aridez de mestres, aqueles cuja palavra dita e/ou escrita é reconhecida como verdadeiramente livre e original. Concordo com os que defendem o primado da fala pois é, da dinâmica gerada pelo diálogo, que a Filosofia surge. A nossa tradição é, todavia, pesada e escolástica. Quando andávamos na universidade, precisávamos ler muito para poder discutir, ora nesta exigência elidíamos o principal: a incompletude de todo o pensamento, a sua necessidade de correcção ou de amplificação, as intuições e as vivências. Os mundos que se acordam quando alguém fala interpelando a nossa atenção, impedindo-nos o sonambulismo onde estamos geralmente acomodados. Se o texto escrito tem também esta função de interpelação ele age muitas vezes como factor inibidor, como se face à sapiência de um sistema toda a interpelação fosse vã ou pueril. Só a palavra dita pode tornar viva e actuante a palavra escrita, ruína testemunhal que sem essa interpelação permanece enquanto tal. Herdeiros da tradição escolástica, nós professores somos frequentemente assombrados por este problema.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

lamentações de um blogue abandonado seguido de elocuções sobre o Fingimento

Corro o risco de ficar sem leitores.


Help! A culpa é do Facebook que "Abarbata" tudo!! Monopólio dos contactos virtuais!!A mim leitores!! Campanha de angariação de leitores/comentadores em processamento intenso...estratégias a adoptar, etc etc. O mais certo é o blogue, ao fim de um tempo, não sei bem quanto, não ter novidade, ser mais do mesmo, ora nós queremos ser surpreendidos e cativados. Não vou dissertar sobre isto que não me apetece.Também não gostaria de ficar sem leitores/comentadores, mas se assim for, vou dedicar-me à arte de fiar em outras rocas.
Bom, deixemo-nos de lamentações e vamos ao teatro.
Fingimento e verdade: Há verdade no fingimento? Será o teatro verdadeiro apesar de ser um fingimento? Não são o mesmo? Não consideramos verdadeiro o que é falso? Pura aparência que esconde o ser? O estranho deste novo trabalho da Cornucópia, não são as considerações filosóficas sobre a Verdade e a Mentira, mas uma espécie de ambiguidade estrutural provocada pela desmontagem de um texto de Lope de Vega que é, ele próprio, um jogo de espelhos sobre Teatro e Realidade Vivida. Trata-se de três verdades: a do actor, da personagem e da pessoa que lhe deu vida: S. Gens. Quem é o verdadeiro? O que verdadeiramente se passou? Que relata o teatro? Estas três camadas de realidade/verdade sobrepôem-se, jogando entre si, trocando referências, ao ponto de nos confundir. Resta saber se nos confundimos porque não queremos aceitar o óbvio: não há verdade nenhuma, são tudo fingimentos com intenções verdadeiras. Ou se, de facto, a nossa condição é mesmo essa: a de viver procurando sempre uma verdade à qual não podemos aceder senão por um acto tresloucado de fé. A fé não deixa de ser , e essa é a ambiguidade, uma última e convicta decisão por uma ilusão, um fingimento que não se reconhece enquanto tal.


A ver.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

boca do inferno

Caminhar sobre as rochas ao pôr- do-sol. vadiar com atenção nestes promontórios, escutar as vagas que ressoam debaixo das pedras. aprisionadas vagas. Cada sítio, mesmo os velhos sítios, ressurgem novos pelo poder de novas emoções, daí que nenhuma paisagem seja apenas ela mas todas as histórias que nesse momento transportamos e deixamos que se deitem ali, ou que ali se evoquem. Somos os emissores do mundo, somos os seus deuses de voz surda colonizando de palavras as pedras e as vagas. Somos estas personagens que cruzam e unem lugares, tempo,ficções e papeis. humildes e cauterizados.





A imagem não tem autor e foi retirada daqui

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dia de Teatro

A Truta...há dois anos, exactamente a 27 de Março, comunguei com eles o dia do Teatro e houve bolo no fim. A peça era "Ivanov" de Tchecov. O projecto revitalizador; grandes textos, actores com prazer em representar, (aliás esse traço é comum nas duas peças), uma aproximação ao coloquial, reajustando a encenação para captar a vitalidade dos conflitos e das personagens. Ousar "meter buxas" e apresentar uma alegria e um ritmo contagiantes, mesmo com textos "pesados". Dois anos depois, este " Histórias do bosque de Viena" consolida esta ideia. Peça de um autor austro-húngaro, Horvath, apesar de escrita em 1931, permanece estranhamente actual: crise económica, desemprego, insegurança social, contexto ideal para ressurgir o que há de pior no humano: o medo paralisante. Ora o medo gera o apego cego às tradições, e um instinto de sobrevivência voraz, encoberto por uma capa de princípios que não são mais que cínicas justificações para acções cruéis e egoístas. Da indiferença à desgraça dos outros, às ideologias "salvadoras", como o nazismo, é um passo curto. No fim, não havia bolo, mas uma tristeza qualquer, um clima de ocaso. Leu-se Malcovitch e denunciou-se a asfixia das artes do Teatro por falta de verbas. Senhores, são pães, acabaram as rosas!!