domingo, 28 de março de 2010

dia de teatro











dia 27 é dia de teatro. desde o princípio que soube celebrar o Teatro, faço-o porque me sinto traidora, infame, cínica, e nada como a má consciência para nos mover ao altruísmo. este ano fui ver Ivanov ao Maria Matos, o ano passado levava peça a cena, peça ainda inacabada como quase tudo o que faço, alinhavo, mesmo assim cumpria o repto, sacudia a culpa de não me esforçar para dar melhor voz ao chamamento. há quem seja chamado a Deus, eu fui chamada para o Teatro e nem gosto especialmente dele, é uma relação familiar, uma coisa de não escolher , de ser assim , nem é uma fatalidade, mas surpreende-me, só isso.


voltando à peça, frases dos actores largadas ao improviso arrepiaram-me, não foi Tchékov certamente que escreveu " só cá faltava mais este!" e outras barbaridades surgidas ao acaso, para ser divertido. sacrifique-se o texto, a bem do espectáculo,até se podia aceitar se fosse um texto qualquer, mas Tchékov não é "um qualquer", meter buxas a heito para simplificar a modorra das frases parece-me desleal. (resta saber se a lealdade tem alguma coisa a ver com arte, até nem tem) mas corta a melodia do texto, conspurca-o. (nem sei como dizer isto porque sinto-o mas depois dito soa a moralismo de pacotilha) Mas este Ivanov tem o mérito de nos confundir, ficamos a remoer: espera, isto é tragédia ou comédia? ora essa dúvida coloca o dedo na ferida, de facto Tchékov faz a tragédia parecer ridícula, uma tragédia ridícula num mundo ridículo onde o amor tem o mesmo valor de uma pescaria ao sável.
Imagem do Grupo "A TRUTA" e Tchékov

quarta-feira, 24 de março de 2010

resultado

abecedário da forma, acercadura da aparência. resultado.
baixando o olhar podemos seguir a linha até ao sítio mais permeável em que já é mancha, podemos também num gesto magnânimo abandonar
como quem diz, estou farta mas não queria dizer e escorrega para o vácuo
aí sem conta nesse preciso momento onde
possuída por um dromedário de vozearias ríspidas deixa que elas risquem ao acaso sem se importar.
recomeça
o resultado do meu olhar (deste meu olhar)vence a espuma com que te vou olhando a ti, sem serenidade alguma,
fazendo figas.
o outro , o olhar que te seguia, bebe, ferido, estende os dedos
escuta o compasso com que respiras.



Imagem:Robert Longo, desenho

domingo, 21 de março de 2010

Ara Guler: o fotógrafo



as imagens são de Istambul nos anos 50, o momento único, insubstituível, a vida mínima ao milionésimo de segundo do click.aquele som, o tumulto, ou a história, o movimento onde se segue o passado e adivinha o futuro e a cidade, a gente e a pedra, a água perdida na sombra, o pó do sapato. o que ali, justamente, se passou, inscrito na mancha e na linha que impressiona o papel.
se há momentos de revelação, este foi um deles.

sexta-feira, 19 de março de 2010

no cabeleireiro


o rapaz brasileiro tem voz meiga , braços compridos, mãos ágeis. e certamente não uiva em estádios de futebol. naquela fábrica de "arranjar mulheres" são cada vez mais os cabeleireiros masculinos brasileiros. hoje percebi porquê. não é só o cabelo e a unha, é a auto-estima que é preciso compor, e, nessa área, são mestres aqueles rapazes bonitos que nos rodeiam a cintura com delicadeza para retirar o papelote com o pedido e nos mostram no meio de um cabelo espigado a mais afrodisiaca das formas. Não fui apenas cortar o cabelo, fui assistir a uma aula de como ser amorável. aula ao vivo e sem matéria teórica. poderia ter saído dali arranjadinha como uma jarra de sala num domingo de festa, mas preferi limitar-me ao corte de cabelo, com secagem rápida, um pacote junkie. ricardo, assim se chamava o rapaz, explicou-me as possibilidades, dada a presente circunstância, (reduzidas). competia-me a decisão, ora, muito correcto, mas hesitei, veio-me a saudade da minha antiga cabeleireira que começava na tesoura e acabava no secador sem me perguntar nada. para que serve a liberdade de escolha se nem sei o que quero? prefiro que ouse tomar a iniciativa, logo se vê, disse. para abreviar, foi rápido e brilhante, saí do cabeleireiro como o católico do confessionário, não era só o cabelo, era a alma lavada e...com amaciador.

quarta-feira, 17 de março de 2010

romaria

no carro, entre carros, oiço os primeiros acordes, num dia que seria um sonho mau se não fosse apenas realidade pura e dura, sem a habitual poesia que como o coentro na açorda vem salpicar os pés e sobe mansa pelas veias, soletro Caipira, "Sou caipira, pira, pora, nossa, senhora de aparecida, ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida", um toque de seda, um gole e outro, o sol, sacudir a cabeça, "como eu não sei rezar, só queria mostrar, meu olhar, meu olhar, meu olhar" ao ouvir esta música, (ou foi depois de beber as duas caipirinhas? não sei,mas acredito em coincidências) a meio do charco empapado da minha angústia de não vislumbrar solução para a peça, a peça, a peça, vejo já as caravelas por aí fora, a culpar-me sem remédio, tive uma ideia, e se fosse um mendigo a sonhar? um mendigo a sonhar com o vasco da Gama e a vê-lo no seu sonho? Claro, a ideia resulta, é um pouco como nos sentimos todos, ou como gostamos de nos sentir, uns coitados que já foram reis.curioso ter encontrado uma solução tão lusitana entre tanta euforia brasileira.

Obrigada Elis!

sexta-feira, 12 de março de 2010

Luís

já tinha perguntado à minha irmã: Afinal de que morreu o Luís? a morte tinha sido inesperada, ainda na semana passada o tinha visto na rua, ela não me soube dizer, vim a saber pelo Jornal, agora no Público, este Luís, imaginava-0, mas à medida que fui lendo a notícia o retrato incrédulo do Luís foi surgindo, claro, só pode ser o mesmo. Atirou-se da Ponte Vinte e Cinco de Abril. dava aulas de música, éramos vizinhos quando ainda vivia em casa dos meus pais, tocava flauta e escrevia no jornal de Oeiras. a notícia diz que foi vítima de "bullying" de uma turma de alunos, insultavam-no e não tinham qualquer castigo. impunidade. a escola aboliu os castigos...como tudo isto me parece imensamente infeliz e imensamente estúpido. mais uma vítima de insultos e humilhações em escolas sem tomates para manter a disciplina, o Luís, o Leandro, não sei se dá vontade de rir ou de chorar. SUICÍDIOS? NÃO! ISTO SÃO HOMICÍDIOS POR NEGLIGÊNCIA! veja-se aqui

terça-feira, 9 de março de 2010

o cão


estava na loja de animais, era pequeno, cachorro, olhou para mim com uns olhinhos de tristeza, foi um segundo de empatia total, corri para dentro da loja para o levar, é que emoções assim não acontecem todos os dias. alguém me puxou pelo casaco, ouve, disse, queres um cão? adopta um desses abandonados, mas eu não queria um cão, queria aquele castanhinho sentado sobre as patas traseiras a pedir para o levarem. a seguir, com o cão ao colo, lembrei-me do apartamento pequeno demais para um Labrador, do bicho aprisionado entre o sofá e a cama e voltei a pô-lo no lugar. a custo. um dia voltarei para te buscar, prometo. entretanto talvez tenhas razão, talvez se arranje por aí um franganote abandonado, de olhos tristes, que me parta o coração.

sábado, 6 de março de 2010

Já me tinha dado para escrever sobre a Leya quando lá andei a cirandar, e sinto um secreto prazer por ver confirmada a minha intuição de que aquilo não é propriamente uma editora de livros mas mais uma máquina para vender um produto rentável (cedo à tentação dos chouriços, porque nem de longe há qualquer semelhança entre a Leya e qualquer produto tradicional de cheiro). Vi-o naquele ar eficiente e crispado das pessoas, aquele ar de quem tem objectivos muito precisos a atingir. a propósito, esta mania actual de colocar objectivos muito precisos a atingir para cada um, em cada parcela de tempo, se bem que seja muita aritmética é também muito estúpido, porque focamo-nos numa coisa e perdemos o gosto para o improviso e para o espontâneo, sem dúvida, o nosso melhor.
Mas a Leya foi Fo....pelo MEC que a mandou Fo...
assim, saborosa a frase, limpinha,lançou a blogosfera num entuasiasmo Primaveril. Toda a gente fala disso.

Agora que todos batem na Leya sinto pena, quero salvá-la! Nós temos de deixar esta mania de ser Românticos e considerar os livros como negócio!! Tento convencer-me. Ok. Têm que pagar aos empregados, ter lucro, etc mas porque não publicam o Cesário Verde? Agora destruir livros para pasta de papel sem tentar vendê-los mais barato, parece-me de" gomitar"como dizia a minha amiga D.Angela depois de beber mais que a sua conta!

quinta-feira, 4 de março de 2010

Alfarrabista

chovia copiosamente quando entrei no alfarrabista da Poço dos Negros, toda a rua em declive, estreita e escorregadia exigia uma atenção e uma arte para não pôr o pé em falso e desabar no chão, foi a olhar para ele que abri a porta com a tabuleta ABERTO escrita a computador em folha A4. Lá dentro a luz acesa e o cheiro, aquele cheiro a livros velhos que sempre me há-de tirar do sério e estampar-me um sorriso imbecil e sonhador no rosto, aquele cheiro para onde mudaria a traquitana da vida, em peso, e a arrumaria ao acaso entre os volumes simétricos, nas estantes a perder de vista, o Borges tinha razão: cada biblioteca é um labirinto infinito e cada livro uma chave e uma perdição para outros labirintos. O velhote escondido atrás do balcão tinha o ar calmo e solícito de um alfarrabista antigo, homem de livros, sim, tinha, foi procurar, temos 20.000 títulos, ao fim de algum tempo lá me apresentou os Irmãos Karamazov e a obra completa do Dostoievski. A edição era dos Estúdios Cor, num só volume de folhas amarelecidas. Exultei, era mesmo isso que procurava. A chuva, é preciso ter cuidado, disse, enrolou então o livro em dois sacos plásticos enquanto me fazia à conversa, para prolongar um pouco mais o momento, o momento do dia, pensei. Cá fora a chuva continuava, pus o livro na mala e não me preocupei mais com a calçada escorregadia.