domingo, 27 de novembro de 2011

os bares

sempre frequentei bares, com assiduidade alguns, fortuitamente outros, em tempestade alcoolizada, em euforia tribal, na conquista amalucada ou na sedução, também em desespero confessional ou só para encher a noite de fábulas, os bares acolheram com desvelo ou apenas indiferença as minhas necessidades de encontro ou fuga, ambos ao mesmo tempo e sem reflexão ao pormenor. Estaria tentada a confirmar a afirmação ingénua do bar como palco onde podemos seguir as cenas da nossa, agora que escrevo sobre isso, vidinha, episódios e cenários, figurantes e protagonistas. Vem-me ao ouvido a música da Alcione " Mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade...de companheiros em pleno exercício de democracia." Seja como for, amordaçando nostalgias ou tiradas pseudo moralistas sobre a utilidade ou inutilidade de tudo isso, à parte o gozo experimentado, gozo real, sólido, metamorfoseado nos intuitos ou no acaso, os bares ensinaram-me a perceber a lógica entre o espaço e o estado de espírito, o Vertigo é um desses mestres, há nele uma rara percepção da coisa da noite, desse vórtice infinito e expectante da noite. Sentar-se ali reenvia para catedrais e sótãos antigos, espaços de memórias subitamente presentes, vindas não se sabe de onde, papéis com poemas escrevinhados, contemplação amorosa, um não saber, uma intuição de como podem ser decisivos certos momentos, insubstituíveis. Os vitrais do tecto ou as mesas muito limpas e enceradas, a música em compassos longos, realçando uma espécie de silêncio onde as palavras ganham força de actos decisivos, a luz familiar, íntima ameninando os rostos, tocando-lhes as fragilidades. É um bar, pagas o que comeste e o que bebeste, e sais. A noite apresenta-se então de novo, inteiriçada, indagando sobre a tua disponibilidade, e respondes sim, afirmativo e não há nada, mas nada mesmo, mais precioso.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Apesar de você



"Você que inventou a tristeza ora tenha a fineza de desinventar." Grande Chico e grande interpretação!

domingo, 20 de novembro de 2011

post doc

caminhar pelas ruas de lisboa, as velhas ruas dos velhos bairros de janelas estreitas, caliça desmaiada e opaca, calçada irregular, portas fechadas com batentes, degraus. Pergunto-me o que vejo, o que é ver, se nesse acto de me comprazer com as linhas, volumes, cores e tons, não há também passado, um passado de histórias e sobressaltos, frases ditas, no acto de ver as botas a subir o lancil de um passeio distraídas pernas, frases cruzadas, no calor de uma conversa, ou ar fresco depois de uma noite de chuva limpando a poeira da cor, gritando-a suavemente sobre a tarde, a emoção do corpo, onde há também pensar, a estranha presença do corpo, desta rua, do meu corpo dentro e fora dela, desprendendo as redes com que teço a atenção, penetrando dedos húmidos no olhar como um felino rombo, um feroz servidor de cálices, baixando os olhos, vendo por dentro, compondo a fugacidade para a desviar do lugar onde não a podemos usar, uma e outra vez, desmaiá-la, desdobrá-la, arrepiar-se nela. se somos nas coisas ou elas em nós, se nesse momento em que sentimos, só nesse ainda e sem nome, instante, vemos. A dificuldade de separar, traduzir escolher palavras é ainda ver, de uma outra maneira. A memória do discurso quando ele se estende à nossa frente, muito à frente do que sentimos e se multiplica em inutilidades, como parágrafos e letras, conjugações e metáforas, eu dizia, caminhar (só) pelas ruas antigas de lisboa.




foto: Willy Ronis

domingo, 13 de novembro de 2011

os idos de março

O título deste filme "Nos idos de Março" tem uma ressonância estimulante. poderia lembrar-nos "Julio César" e a profecia do adivinho perdido no meio do entusiasmo da multidão: "Tem cuidado com os idos de Março". Na verdade o imperador caía assassinado pelos seus amigos e conselheiros, a 15 de Março. Em Roma as discussões de poder arrematavam-se com uma qualquer tragédia. Não se discutiam as infidelidades e os casos de alcova nas manchetes dos jornais, mas hoje, em 2011, o imperador é um candidato a presidente, numa América hipócrita com os bons costumes. Em democracia não se mata dessa morte de sangue, mata-se a honra, mata-se a dignidade, matam-se os escrúpulos e depois de meia alma morta, temos homem para presidente. Se as formas de afastar alguém do poder mudaram muito, a traição e a lealdade não, os jogos de sombra permanecem e as virtudes do carácter são a referência, mesmo quando não passam de um obstáculo para o poder. O filme de Clooney trata com pinças a velhíssima história de César e Fausto. Trair, vender a alma ao diabo pela glória. mas a verdadeira questão, a mais lúcida, é a de que o facto de alguém o fazer não faz recair sobre ele a pena mas condiciona todos os outros ao mesmo. Basta alguém viciar o jogo para que nele ninguém mais possa jogar limpo. É disso que se trata, do efeito das acções de um sobre todos. Quando Clooney diz que a sociedade tem de ser melhor que o indivíduo, está a referir-se a um ciclo vicioso, que ela, a sociedade, não pode ser melhor enquanto cada indivíduo agir apenas por si. Esta será apenas uma frase boa, mas utópica. Depois, actores, actores, actores e o milagre dos filmes.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

místicos


Aquesta divina unión,

del amor con que yo vivo,

hace a Dios ser mi cautivo,

y libre mi corazón;

mas causa en mí tal pasión

ver a Dios mi prisionero,

que muero porque no muero.

Santa Teresa de Ávila




Quando leio os místicos não deixo de sentir perplexidade e, ao mesmo tempo, ironia. Há algo que os une, uma esperança infundada, uma agonia prazenteira. o prazer associado à dor, ao sofrimento atroz. associado significa aqui fundido num só. A perplexidade não vem com a estranheza, não me é estranha essa experiência, nem tão pouco considero estranho que ela seja libertadora. assumo que o pode ser, que o é, enfim. A perplexidade deriva de não conseguir compreendê-la como experiência de um verdadeiro convívio com o Bem Absoluto-Deus, o Espírito. Há nelas um estímulo corporal, uma emoção exacerbada que não posso evitar pensar ser fruto de uma certa loucura proveniente da falta de verdadeiro estímulo corporal do outro, físico como nós (mas não só, obviamente). o excesso não resulta de um transbordar de verdadeiras emoções e sensações face ao Absoluto mas de uma carência, carência que se toma por amor. Dai a um homem ou a uma mulher a clausura e a solidão mais austera e ao fim de um tempo ele imaginará que anjos de fogo o visitam. dai-lhe a fome e ele, para lhe resistir, imaginará a abundância. Trata-se de uma espécie de experiência da provação e, pergunto, que distingue esta experiência de outra qualquer a qual, por excessiva, pode resultar em loucura?

domingo, 6 de novembro de 2011

impertinências

estava a tentar escrever qualquer coisa e a perceber quão longe está o entusiasmo dos blogues. já risquei umas dez frases. as frases são sempre o começo de tudo. quando se trata de escrita. uma boa frase salva ou perde o dia. uma boa frase lança-se sobre nós e contamina-nos um dia inteiro. vai connosco para todo o lado. reparo que ao tentar enumerar "todo o lado", associo tarefas, lugares mas escapam-me os rituais, esses tempos nomeáveis, o tempo do trabalho, o tempo das refeições, o tempo do sono, o tempo do prazer, o tempo da diversão. estas separações cada vez mais se confundem, e daí todo o tempo ser tempo gasto, não tempo renovado, o tempo do ritual. O ritual vive da repetição, exige a entrada num outro patamar, implica a existência dos outros com quem o cumprimos e com os quais o acto adquire um certo significado. cada vez mais as refeições são comer, meter comida na boca num lugar qualquer mais à mão. e o tempo do trabalho contamina o da diversão e o do prazer ou vice versa, confundem-se. não me orgulho disso, sempre o combati, não posso nem quero ser vítima deste tempo linear curvado para nenhures onde as coisas são coisas e os actos actos, movimentos para coisas, intenções. hoje falta-me tudo mesmo. sem mediação. daí a frase não surgir. pensava escrever sobre os blogues e acabei a falar do tempo. ou de mim. ou estava a falar das frases sem nenhum deles. nem o tempo nem o sujeito. fechados. ambos a cadeado. na frase.


Gustave Courbet, A vaga

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

devoções

Podíamos ser devotos de Jesus Cristo ou da Virgem Maria, normal, são figuras culturalmente sagradas, mas também podemos ser devotos de um tom de cabelo, de um certo odor, de uma expressão, de um movimento. A sacralidade está na submissão do sentir áquilo que pela sua beleza é de outro mundo, julgamos nós, quando sentimos ser desmesuradamente completo, absoluto em si, o seu aparecer ou ser; paradoxal é descobrirmos nessa submissão uma forma insuspeita de liberdade, a liberdade de sentir e nomear sem medo dos territórios fechados onde a vivência do sagrado nos é consentida. São, por isso, permitidas todas as ficções e até imensamente desejáveis se por elas reescrevermos o mapa das nossas pequenas e insignificantes relíquias. Podemos usá-lo para descobrir a direcção, o nosso mapa do tesouro, mas teremos de guardar para nós o mecanismo da sua descoberta.