terça-feira, 31 de julho de 2012

em letra pequena


penso que escrevemos para esconjurar o medo. para o afastar shoo! mas não deixamos de escrever se, desmascarada essa intenção, o medo continua e as páginas já se vão cheias de letras. então escrever é um modo de acolher brava um certo fracasso, talvez dos poucos fracassos que não nos importamos de abraçar e até de insistir.a minha geração crê na escrita, na leitura, na palavra. persegue-a mesmo se ela se acumula inútil em pó e cotão por todos os compartimentos da casa. continua a ser uma visão feliz, a dos livros, muitos e em estado de sítio, parados e transportados em pontes movediças, nas sacolas toscas ou finas do nosso ser viajante. sim, cremos nas palavras, somos possuidores orgulhosos da arte da fuga, de todas as formas seráficas e apaixonantes de nunca estar verdadeiramente em sítio algum. demorar ausências, amá-las no excesso estonteante das várias possibilidades de presença. todas em breves momentos nos montaram para as montarmos e todas por largos anos se mostram quando convocadas,  deixam entrever o flanco onde as linhas da cosedura com o nosso desejo entroncam.hei-de mostrar-te os livros que ando a ler, as memórias da minha projecção, o filme onde me poderás ver.  de formosas verdades e múltiplas traças se comporá a letra quando sobre ela te deitares a escorregar como só tu, nessa doçura sem verbo, como só tu fazes ou a minha escrita  imagina. 

domingo, 22 de julho de 2012

praia


Para além de achar que me faria bem ir a banhos, arremessar-me para a água como se não houvesse amanhã,(entretanto penso que, não sendo propriamente uma idiota,  é como me sinto metendo água por todos os poros e engrossando a fila dos insatisfeitos de calções) vou a banhos como quem vai segurar ondas na prancha semi-cerrada das pálpebras. Restam-nos as praias senhores, já que o resto flúi para debaixo da tampa do alçapão como se de vergonhas se tratasse - falo do país - deste que também não vê nada nem quer.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

fotografia

Germaine Krull, 1927

Fotografar o nu,  ver o nu fotografado é o melhor modo de compreender o tempo. O nu desenha a ténue linha do presente, corporiza o presente na sua efemeridade nostálgica  magnífica e intocável. Carne dissolvida em pequenos pontos luminosos ,a biologia deixa-se seduzir pelo sonho ou pelo desejo, nesse instante vida esplendorosa e vislumbre desapaixonado da máxima beleza e da máxima perda.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

birar a página

Hoje nas escolas fala-se em Missão, diz-se: "Tens de vestir a camisola!", trocando por miúdos, acenam-nos com uma viagem sem volta (estou apenas a repetir a fórmula da maioria e da Direcção) num destino comum contra o insucesso. O insucesso sai caríssimo ao Estado e é um desperdício de tempo e dinheiro. Temos de rentabilizar, e o lema é criar Escolas de Sucesso,  para isso todos os sacrifícios podem e devem ser exigidos aos professores porque o investimento em recursos materiais é impossível por causa da crise, ora se o investimento do Estado é menor, o investimento pessoal tem que ser maior. Este princípio neo-liberal ou liberal (não percebo bem a diferença) alastra a todas as áreas da sociedade, trata-se de eleger o trabalho como prioridade. Enquanto uns embarcam nessa viagem deixando para trás as suas vidas pessoais rarefeitas, outro ficam em terra escavando buracos na areia, procurando desesperadamente fazer qualquer coisa que os outros já fazem, o trabalho é coisa de eleitos, dispostos aos maiores sacrifícios. Este estado de coisas é fracturante para uma sociedade como a nossa, humanista. Os chineses parecem modelares, têm uma cultura do trabalho arredada da pessoalização, trabalham porque essa é a sua forma de viver, anulam-se num todo sem fracturas nem resistências, vemo-los nos Restaurantes ou nas Lojas dia e noite, sem mostrar cansaço. Mas, nós, ocidentais, não queremos. Porque o trabalho, na sua essência, é (ainda) uma forma de alienação. Poderemos responder com o fosso entre as instituições e as pessoas, sentimos que trabalhamos para algo que não é nosso, que não elegemos enquanto filosofia ou enquanto sistema económico e daí a sensação de alienação e cansaço. Poderemos responder com uma certa filosofia judaico-cristã que entende o trabalho como um castigo necessário à sobrevivência, que de algum modo é uma escravidão fora do real desígnio do indivíduo.Cumprimos o castigo com abnegação. Esta nova visão do trabalho como razão de vida é-nos estranha, mas, cada vez mais a tradição judaico-cristã está a esmorecer, a diluir-se num capitalismo religioso, fé, esperança, rendimento. Nesta sociedade que aí vem não há alternativa.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Noite de teatro: O mercador de Veneza no festival de Almada



"SALARINO - Ora, tenho certeza de que se ele não  resgatar a dívida  no prazo certo, não haverás de tirar-lhe a carne, pois não? Para que te serviria ela?
SHYLOCK - Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para alimentar a minha vingança. Ele humilhou-me, impediu-me de ganhar meio milhão, riu dos meus prejuízos, zombou dos meus lucros, escarneceu da minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo
com o exemplo do cristão? Ora, vingança. "
Shakespeare, O mercador de Veneza.

São nove horas e o átrio do teatro de Almada está repleto de vozes. Filas de pessoas ainda à espera de um bilhete que não há, tornam o espaço apertado. A peça a exibir daqui a pouco é "O mercador de Veneza" numa encenação de Ricardo Pais,  levada à cena uns meses antes no Porto. Nós os mouros ainda não a vimos por terras do Sul mas o festival de Teatro de Almada trouxe-a. Ricardo Pais é um bom encenador, arrisca, esta é a sua última encenação à frente do Teatro de S. João. O texto é Shakespeare. Há também  Albano Jerónimo a representar António e  João Reis, Shylock. Os ingredientes são mais que suficientes para elevar as expectativas. Quando começamos a ouvir o som de uma espécie de tubos de ferro suspensos do tecto ao bater levemente uns contra os outros e o palco cheio de sombras, as expectativas tornam-se mesmo muito altas. À aproximação dos actores/personagens surge a primeira impressão. Fatal a primeira impressão numa peça de teatro de Shakespeare, está nos actores: falta-lhes solidez, força, são frágeis e imaturos os seus corpos, mais concretamente a forma como se movimentam no espaço. O teatro ainda não lhes corre nas veias. O exemplo mais gritante é a beleza de Albano Jerónimo, perfeito, alto, lânguido, mas de voz incaracterística e má dicção, do poético texto da abertura fica-nos um amontoado de sons, uma falta de sentido que permanecerá rondando a sua personagem, como ave agoirenta, não percebo, nada me transmite senão cansaço. Salvar-se-á este encontro com João Reis, o único atravessado pelo Teatro, o único à altura do texto. Nenhum actor, por melhor que seja, pode brilhar sozinho, a falta de contracena amarfanha a sua tragédia e é pena, com actores à sua altura veríamos outro "Mercador". Daquele bando de jovens mancebos bem vestidos resta-nos a beleza da roupa e dos efeitos cénicos :aí o Ricardo Pais é bom, diria que é o melhor. Ainda de leve a ideia central do texto: A tragédia de uns será sempre a comédia dos outros. E não vou escrever mais  porque já vai longo este texto.