terça-feira, 26 de março de 2013


Um dia sem saber

I


Um dia sem saber ela encostou um pé à parede da casa e sentiu a espessura da cal.

Cuidado!

Mas não se mexeu também. Paralisada.

E a espessura da cal era tão grossa.

E tão grossa e espessa a noite

Que lhe fugiu a voz na garganta

E por socorro ou falta dele estremeceu.

Quedou-se então no silêncio agudo

E não abriu mais a boca senão para bocejar ou comer

Durante todo o silêncio

Cada segundo

Ela o sentiu como silêncio

Como negação

Todo o silêncio é negação

Todo o silêncio é negação

Mas não foi  feliz nessa atitude

Tão pouco o poderia ser

Não morreu de velha nem de nova

Pois o tempo espesso como a cal da parede

Comeu-lhe a língua

o juízo

E o baço

o estômago ficou

Deixou-a feroz

Em poder dos elementos que de todo o lado a feriam sem que ela lhes desse qualquer luta

 Capricórnio perseverante comandou a sina da sua ama negra.



Existiu essa mulher mas ninguém soube.

Quando tudo morreu ficou ainda a cal enegrecida

Restou a aparência de rua

O sol sem signo volteou no ar

Não houve milagre algum

Nem sino

E, no entanto o tempo daquela mulher era realmente verdadeiro

Realmente o tempo.

domingo, 24 de março de 2013

Felicidade


Agora que chega a Primavera, houve muita escrita, muita frase, muito lembrete, porque agora fala-se a toda a hora, pelo computador, como eu, agora também falo, isto é, existo. Mas, este ano falou-se muito na Primavera e, logo a seguir ou antes,  da Felicidade, andam ambas em associação animada para espaventar as maleitas de corpo e pouca alma A dança  da simplicidade e dos pensamentos positivos assépticos e coisa e tal mais do mesmo, estão em franca ascensão. Falou-se pela primeira vez no dia da Felicidade. É ridículo haver um dia para a felicidade, é como haver um dia para A viagem até Calypso, ou um dia da Atlântida. Mitologias várias com o perigo de parecerem coisas assim redondas e ao alcance de todos. Mesmo aquela conversa fiada da moral utilitarista de fazer equivaler o Bem à felicidade e esta à ausência de dor e ao usufruto de variados prazeres, não serve nem como princípio do que deveria ser nem como princípio do que é. Melhor e mais perspicaz visão tem o senhor Kierkegaard ao lembrar-nos da felicidade ser proporcional à angústia, e que não se vive uma parcela de alegria sem o medo de a perder. Explico-me: A nossa vivência mais nobre é mesmo a da contradição, e não há como fugir a isso senão inventando falsas mitologias como esta, cuja única verdadeira utilidade é fazer-nos sentir miseráveis ou parvos. (mais à frente hei-de explicar melhor, num outro post que este já vai longo) .
 
Deixo-vos com o Kandinsky a brincar a brincar...

domingo, 17 de março de 2013

Alma

 
Deserto de Atacama, sessenta e seis antenas apontadas ao espaço intergaláctico, ao tomate vermelho, polpa e sementes, a configuração ou a palpitação, de uma coisa informe e misteriosa, quiça transbordante a todo o pensamento. o universo. sem dúvida que a curiosidade e a investigação sempre foram os actos mais nobres do homem, o conhecimento pelo conhecimento é, só por si, uma benção. Se nos colocarmos no lugar que ocupamos no imenso, talvez a nossa visão se aguce, a nossa importância calibra-se nessa relação entre o nada que somos e o sonho que temos. sempre me pareceu excessiva e doentia esta apologia do indivíduo que a modernidade instaurou. sempre me foram dignos de admiração os que se volatizam para se entregarem ao vórtice de um todo que tem mais de sonhado e, no entanto, é mais real que todas os estados do ego. reparo no papa à janela do vaticano, as botas engrachadas, a batina, e sinto que há qualquer coisa desse movimento de projecção no absoluto a partir da consciência do que se é verdadeiramente, um entre a multidão, um só que renega deglutir toda a diversidade na inquietação e dela faz um veículo de curiosidade pelo mundo. acho que esse é o verdadeiro lugar onde nos encontramos, quando nos esquecemos, para mergulhar em qualquer coisa fora de nós, maior, definitivamente maior. Alma chama-se o telescópio, não é por acaso.

sexta-feira, 8 de março de 2013

A visita da velha senhora.


Fui ver de novo a Companhia Maior mas, confesso,  a chama perdeu-se. Os mais velhos, com suas vidas pesadas, o circo das rugas, aquele dramatismo poético da peça da Calle, não existe mais, em sua substituição temos uma futilidade espaventosa, uma soma de lugares comuns de pecinha de texto, nada que nos faça estremecer.  A história tem graça (escrita em 1956 por Friedrich Dürrenmatt retrata a ascenção do capital e com ele a queda dos valores, lembra um pouco, no tema,  a irresistível ascenção de Arturo UI) mas o espectáculo, mesmo com os músculos sado masoque dos mancebos, não tem nenhuma.
Valeu a noite pelo S. Luís, magnífica sala, e pela observação impúdica do estado drunfado da Clara Pinto Correia, escritora que admiro. O  guarda roupa da Maria João Luís não está mal. Aliás o guarda-roupa é o melhor da peça.
 No ano do meu nascimento, (que vou negar à curiosidade dos dois leitores que se podem dar ao trabalho de ler esta mal amanhada prosa), a Amélia Rey Colaço representou-a, à Velha Senhora. Vi fotografias, porque nessa altura não tinha idade para palcos, e, noto, que há dois factores que o encenador Nuno Cardoso, com aquela mania de bonitinho e vanguardista, se esqueceu ou não percebeu (acho que foi mais a segunda). O primeiro é a idade da protagonista, a velha Erínia da vingança:  Maria João Luís nunca será uma velha senhora e, muito menos uma velha Erínia da vingança. Esta Erínia parece-se com uma Catwomen com cio. Quanto aos mais velhos fazem parte do décor, quando deviam ser uma espécie de coro, porque este texto pretende ser uma aproximação à tragédia. Resumo então a coisa em duas palavras: Pretensiosismo e pouca cultura teatral. Este puto recebeu uma pipa de massa para fazer isto!! Bendita Calle com seus nus apocalípticos!

sexta-feira, 1 de março de 2013

este blogue




Meco, Fevereiro 2013

este blogue anda parado. A escrita perdulária madrasta, ou filha pródiga,  ponto de encontro na multidão,  reticência, reticência, renitente, suspensão, demorava. levantei-me da cadeira e saí pela porta aberta, depois, mais tarde, voltei a sentar-me. o quarto frio, a gata aos pés. o acontecimento, no tempo, agora,  ecoa muito intimamente, avesso à exposição mediática, aos narcisismos da escrita. talvez tenha perdido a tua referência leitor anónimo,  já não sei bem para quem escrevo, de algum modo escreve-se para alguém, alguém longe ou impossível de ser tocado, senão assim, desta forma inclinada,  próxima, pendular.vou fumar mais um cigarro. duas impressões: Djuna Barnes reclusa no seu apartamento em Paris, muito tempo, (na escrita deverá haver desmesura para surgir o impacto): 20 anos sem sair - dados não confirmados - mas nela encontro a justificação para aceitar as minhas fases lunares, introspectivas. converso comigo e aquieto-me, não é anormal, penso, já a Djuna, 20 anos...em casa, sem sair...vejo a Djuna elegante com seu turbante de veludo e reconheço a mesma similaridade com alguns animais como as cobras adormecidas nos longos invernos de mudança de pele.talvez seja isso, mudo a pele, já o pressentira há algum tempo, um novo ciclo de vida, vem do corpo, aquela sensação de ventríloquo, alguém que te mexe e fala por ti, e não sabes qual deles és, se o boneco se o que fala por ele. Agora recuo ou avanço para coíncidir.  É de noite. Haverá para dizer a cor do céu, há pouco, nós, o país, mas a gata adormeceu, e estremece ligeiramente, acho que os gatos sonham.