terça-feira, 29 de outubro de 2013

superfície 1


pela tarde, ainda no veio da rua uma coisa qualquer
indisposta gozava o último sol e todavia
a hora ou o que restava dela sorvia na esquina
sem que nenhum de nós desse pela fina visão 
rendilhada da sombra
a estátua transparente de um clássico pecado
inerte e sem data 
marcado pela fronteira diluída
da tarde
caminhava connosco, não que fosse novo
era óbvio que não
era, assim o tratavam os ecos
um pecado antigo
mas da mesquinha indiferença
ou melhor inépcia para se apoquentar
só nomear era  lícito
sendo assim a manga dobrada
para as lembranças poucas
afazeres limpos
superfícies com ruídos de automotoras
a eito sobre o buço
outras lembranças de gritos
ásperas formas
ocupavam apenas o tecido da roupa 
ninguém sabia ou fingia não saber
por fortuitos azares ou necessidade éramos só do presente
por ele maquilhávamos as doridas horas da tarde
e emergíamos indecisos 
no peito o arco ou o côncavo sombrio
do medo ou dor de o vir a ter

quinta-feira, 24 de outubro de 2013



amo  pedras e árvores sem raízes
caídas
amo penas de gaivotas
mortas
e se pudesse construía uma pequena cicatriz no tempo
um apontamento triunfal boquiaberto e irónico
uma dança de ventre ou uma chamada urgente
ao teu corpo
servente de asas
cintura de dedos

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

permilagem


mas o que é que isto me lembra?? tenho para mim que esta moçoila é rapariga de grandes causas!!

terça-feira, 15 de outubro de 2013

divagações

Será possível escolher conteúdos programáticos de uma disciplina sem ter um propósito ideológico subjacente? Evidentemente que não. Pior é que os representantes das escolhas pensem que sim.Mas, qual será a ideologia numa sociedade que assume maioritariamente que as ideologias são redutoras e, em excesso, manipuladoras? Seja qual for o sentido que se dê a ideologia, como ideia orientadora defendida por um conjunto de pessoas ou como instrumento de manipulação de um classe sobre outra, ela surge quando pensamos num modelo melhor, como deveria ser esse modelo e como deveríamos proceder para o atingir. Ela é portanto produto do pensamento, seja a sua intenção perpetuar um estado opressor ou tentar concretizar uma utopia, ou sendo a primeira o caminho para a segunda o perigo das ideologias, elas contam sempre com a submissão de todos e de cada um ao projeto de alguns, tal cheira-nos mal, a nós que somos individualistas e democráticos. Pensamos então, erradamente, estar ao largo das ideologias e culpamo-nos de não existirem ideias, pois se não queremos aceitar os riscos de ter ideias e de as perseguir, então temos de aceitar viver no imediato, no pragmático, no superficial das coisas e não há outro meio. A verdade é que não nos furtamos à ideologia, somos apanhados pela ideologia capitalista, as ideias estão vivas e amam-se se forem para ganhar dinheiro. O novo conceito disto e daquilo. No campo do saber como se propaga o capitalismo? Arreda-o para segundo plano e dá-lhe valor quando aplicado a um qualquer instrumento. Se não tem utilidade imediata, é  inútil. Assim vemos as Humanidades serem reduzidas a trivialidades e a História quase desaparecer dos currículos. Mas não é a ausência de ideologia, é estoutra que detestamos nomear mas que é única, não é má, mas precisa de ser vista como é, será o preço que temos de pagar pela liberdade? Mas poderá haver liberdade sem alternativas? Quem cria alternativas senão o pensamento?

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

gulag

Hoje um puto. no final da aula, veio dizer-me como se tinha fartado de rir com uma boca de um colega. Detestei. Já não basta gozarem uns com os outros enquanto me concentro a ensinar-lhes qualquer coisita, têm ainda de me dizer!!!. mas o momento pior do dia, estava ainda para vir, a estocada miserável veio da  minha resposta: "Pois é, com tanta brincadeira distrai-se e não presta atenção à matéria!" Mal desferi este pedaço de conformismo mal amanhado, disparou o que me resta de cérebro depois de 8 horas de aulas: que insipidez de comentário, que frouxidão, que acefalia mais medíocre. desci as escadas a amaldiçoar-me mas aos poucos percebi: ao fim de um dia como este sou, na melhor das hipóteses, um saco de plástico vazio onde já não está lá o essencial, não pode, só tralha automática. Perceber isso conciliou-me com o devir. Respirei tão fundo que se colou céu ao céu da boca e acendi um cigarro mal cheguei ao portão. "Continua, dizias, que da metafísica de Kant a Hegel, alguma coisa se perdeu...estive realmente a ouvir" Campos dixit.

sábado, 5 de outubro de 2013

Hannah Arendt o filme

 
quando saímos deste filme vínhamos alvoraçados, entregamo-nos à cerveja branca e preta no bar da avenida, luzes dos carros, calor, moedas a tinir em cima do balcão. a vontade de puxar de um cigarro atinou-se numa planície de concórdia. puxei dele sim e saboreei-o até ao tutano. isto foi antes e depois, no durante a cerveja ardia nos olhos brilhantes dos litigantes.

 estava em causa o nazismo e  a força dos efeitos das sociedades totalitaristas sobre a vontade dos indivíduos, na mesa duas ordens de ideias:  a possibilidade de um sadismo consentido e justificado de acordo com uma vontade geral, ou, por outro lado,  a banalização do mal, o indivíduo anulado, sem pensamento - ou demitindo-se de pensar - para não ver o absurdo? para não sentir a responsabilidade? por medo? os funcionários zelosos das ordens obedecem mas não pensam, são os que provocam  o mal mais radical porque neles não há consciência do mal, alavancando a máquina, são por ela absolvidos e nela decapitados, são eles os acionistas da gigantesca máquina de assassinatos. Depois a figurinha anódina do Eichmann, patético, católico fervoroso (foi o Vaticano que lhe deu o visto para ele poder fugir para a América do Sul) e SS convicto, responsável pelo "empacotamento" de milhares de judeus em comboios para os campos de concentração . Arendt uma intelectual, no meio deste cataclismo, alquimista de palavras rudes mas novas , palavras para compreender, mas quando há violência desmedida, quando se clama vingança, a compreensão não será  um artifício arrogante? uma  excrescência  humilhante? Sendo judia  "devia" alinhar na "catarsis" colectiva, mas os pactos de sangue com o povo não abafam a necessidade de clarividência, clama pelo pensamento mesmo se  não é cómodo, e é perseguida por isso, as vítimas transformam-se rapidamente em carrascos, perpetuam a brutalidade e a intolerância mas justificam-na, serenamente, com a necessidade de justiça.