sexta-feira, 16 de maio de 2014

capicua



Numa  certa altura da vida falta-nos tempo, não porque temos muitas coisas mas porque somos mais lentos  e ainda desejamos muito, como se nada nessa lentidão nos fosse familiar. O motor, a força tempestade,  entrou em desaceleração e a percepção desta súbita mudança faz-nos querer chegar a todos os lados que o desejo laço tinha preguiçosamente adiado. Antes de parar, de parar definitivamente. Dentro de mim há também uma figura absorta, uma marioneta  a que temos de puxar pela mão porque se quedou embevecida pela luz do próprio tempo a passar, assustada pelo absurdo de poder parar, como quando alguém corre atrás de nós com uma arma e o horror prende-nos as pernas, não conseguimos fugir, uma espécie de torpor hipnótico, talvez, um rodilho de silhuetas mudas seguram-se no limite. Os meus dois: o que observa espantado um outro mergulhado no pântano luminoso, no extravio absíntico da languidez da queda. Um tem  pressa demais e  o outro, nenhuma.



domingo, 4 de maio de 2014

The Killing: Crónica de um assassinato




Esta é uma série que se vê religiosamente, a terceira temporada passava às terças, 21.45 no AXNBLACK e nunca um local no sofá foi tão ansiosamente aguardado. De facto,  as americanices policiais deixaram de me seduzir, desde os tempos de uma antiga série, que pouco tem a ver com esta: "Modelo e detective".  Eram todas muito profissionais e previsíveis, com retratos psicológicos estereotipados e recursos ao sexo constantes e repetitivos. Esta lavou o prato dos condimentos enjoativos, veio da Dinamarca e responde sem mácula ao que se espera de um policial: acção, lógica e mistério. Embora sendo produzida em 2007 só por cá passou, a primeira temporada, em 2012, o atraso é corriqueiro mas inaceitável, pergunto-me porque temos de aguentar horas de séries americanas sem interesse e  esperamos 3 anos para poder ver um produto dinamarquês de qualidade notoriamente superior. Andanças do demónio certamente. 
A acção passa-se em Copenhaga, a heroína é Sarah Lund, uma inspectora da polícia obcecada com o trabalho, hermética, pouco emotiva, persistente. Nela se concentra a investigação de um assassinato, com avanços e recuos, erros e intuições espantosas. A rede da trama é larga e envolve famílias políticas, pessoas solitárias e grupos de pressão. Um dos factores originais é exactamente esse, a dinâmica entre a pessoa e o grupo, demonstra de forma convincente como a vontade e as vontades, os interesses e o desejo de verdade se podem articular sem que haja um protagonismo redentor de qualquer uma das personagens, todas, por momentos, são influenciadas pelo grupo onde agem e simultaneamente teimam em ter os seus próprios caminhos, mesmo contra todos, numa espécie de alternância caótica em que as consequências de cada acção têm desfechos para além do que pode ser antecipadamente previsto pelo pensamento do grupo ou de um só, como se cada uma das acções ao chocar com outras vontades nos conduza por meandros inesperados. Estou triste por ter acabado a terceira temporada. Neste deserto televisivo de novelas e produtos para consumo instantâneo, uma janela onde o barulho das gentes não é só ruído, faz falta.