terça-feira, 31 de março de 2009

o amante funcionário

ninguém esqueça que o amante é funcionário
pega, despega a horas e desoras
acotovela-se na fila
e, às vezes, deixa escorregar a pérola que tráz na íris
e rodopia do lóbulo da orelha para os papéis amontoados no chão

o amante raramente sai à rua sem o modo funcionário dobrado debaixo do braço
e uma praga debaixo da língua
protela e recolhe
e só depois faz o gesto da anca
tarde
já os pássaros debicaram a pele
e a esfregona da mulher da limpeza
se abateu sobre o patamar da escada

o amante está para a anca
como o funcionário para o relógio
vigia-a cuidadosamente
e sempre que o ponteiro pára
sai pela janela a voar.
O teatro tem de falar a sua linguagem. não são as palavras, nem a música, nem os actores, nem os ritmos, mas uma outra linguagem feita dos pedaços juntos, misturados ou afastados, obedecendo a uma lei misteriosa e completamente inacessível à razão. linguagem da vida mas numa imitação da vida, retirando-lhe o sumo, condensando-a em ecos familiares que foram perdurando no nosso inconsciente e de repente irrompem quando convocados. O teatro é isso, o reencontro de qualquer coisa que andava perdido, como um irmão uma única vez visto e que alguns anos depois reencontramos. Penso que toda a arte é um reencontro de algo que está em nós perdido e que se conjuga em virtude de um movimento, um brilho, um compasso ou um tom. Tudo isto para falar de pedrinhas atiradas a uma janela. Em si pouco é, todos nós o fazemos, mas para quem as ouve apenas, um som, elas terão de obedecer a um mecanismo misterioso, que a sensibilidade poderá identificar, aquele som, só aquele, não outro semelhante, e aquele ritmo, só aquele, não outro, ou um qualquer, desencadeiam aquela atmosfera, aquele riso ou satisfação de ouvir algo que reconhecemos e vem de lá detrás das dobras de uma experiência antiga, única, das emoções invocadas por uma pedrinha a bater na janela.

domingo, 29 de março de 2009


às vezes o coração quer e não tem o que quer. e nada em nós compreende porquê. compreendemos que é por condição que assim acontece mas não aceitamos, debatemo-nos. esta luta contra um fantasma poderia ser entendida como uma luta pelo absoluto, pela conformidade perfeita entre desejo e satisfação infinita, um desejo de completude e, se assim fosse, o sofrimento causado só nos engrandeceria, mas quando estamos tristes, ficamos pequenos e inúteis como trapos esburacados e recuamos para o nicho microscópico do eu onde só há sobressaltos e mais mágoas, uma solidão cósmica e um sapo que fuma cachimbo até rebentar. Encosto a cabeça contra o muro frio da casa, procuro uma sensação física forte que me roube por momentos a angústia. A águia com suas garras de sangue sobrevoa.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O tempo conjuga-se contra mim. já lhe disse que sou sua cúmplice, atirei ao rio uma pedrinha e fui-me com ela, mas Cronos voltou ao seu antigo hábito de comer seus filhos, em silêncio mostra um poder que não lhe pertence, concedido pela queda, nossa, precisamos de falar, meter uma cunha no espaço vazio para que não se feche a esperança de, por um minuto, no roçar de um olhar, espreitar para dentro da eternidade. Ninguém nos pode acusar este longo lamento contra o tempo, nós os que já habitaram estrelas na imaginação, ouvimos a voz das sereias e não regressámos mais, perdidos na miragem. Nós concedemos-te agora esse poder Cronos, tu sabes que um dia Zeus te enganará, mais uma vez, contra ti se unirão armadas e mares e dentro deles o coração quente das palavras, a chama dos sentimentos,dos quais tu, Cronos, nada entendes.

domingo, 15 de março de 2009

Eastwood, de novo



É absolutamente, absolutamente, desculpem a unanimidade mas o filme é bom, surpreendente, bem feito, humano até à medula, actual, e grande. Em vez de cavalos há um Ford dos anos 70, há carros, máquinas, homens montados em carros. Homens sem condescendência. Há uma prece em silêncio...Ave Maria... um padre sem história mas com carácter, uma rapariga chinesa que não tem medo e o choque de frente de olhos abertos a esta realidade violenta, feita de gente com valores e de gente desenraizada e sem escrúpulos.Há bons e maus mas matizados, uma série de histórias anónimas que tornam as personagens vivas e não fantoches de feira. Este e o outro filme de Eastwood voltam a criar a paixão do cinema , da arte, pura e dura de contar histórias.

quinta-feira, 12 de março de 2009

A lua, a doce lua, a hipnotizadora, a exigente, a eterna e constante lua. quando assim nasce lenta, luminosa e lenta com suas curvas de lua cheia sobre o casario anónimo, abre a parte sensível da alma, esse lugarzinho apertado que quer ser infinito, porção de nós que já de nós quer sair para ser nas coisas, naquelas que tremem e lampejam e seduzem. Luz nas trevas assim são algumas noites e são mais que as palavras dizem, pois se nós as procuramos para se fazerem, também elas, luz. As pessoas com seus casacos invernais demoram na entrada e saída das casas a respirar, antes dos muros lhes cortarem a visão. em noites assim é preciso deixar vaguear os passos e nada compreender, deixar-se ir numa impressão e não voltar senão quando o corpo de cansaço ou a circunstância do trabalho nos martelar com seus ferrinhos de coisa ferrosa e persistente. porque aí noite, onde estás, haverá sempre uma parte de nós que fica, de casaco meio desfeito, nas dobras da noite que ficou.

domingo, 8 de março de 2009

Uno aprende que lo imprescindible


no eran los libros


no eram los discos


no eram los gatos


no eran los paraísos en flor


derramándose en las aceras


ni siquiera la luna grande -blanca -


en las ventanas


no era el mar arribando


su rumia rompedora en el malecón


ni los amigos que ya no se ven


ni las calles de la infancia


ni aquel bar donde hacíamos el amor con la mirada.




Lo imprescindible era otra cosa.




Cristina Peri Rossi, Estado de Exilio

terça-feira, 3 de março de 2009

A Festa na casa dos barcos, ou festa no clube de vela, os títulos deste quadro de Renoir não detêm a unanimidade, belo, a unanimidade congela e retrai nenhuma dessas sensações pode nascer ao olhar. O que me atrai neste quadro é esta atmosfera de lazer, esta descontracção e absorção no que é pueril e leve, os momentos, o presente irrepetível e espontâneo, o gesto que nenhum significado traduz só aquela tarde e a luz que dela emana sobre o corpo. Talvez precise de férias ou de me deixar banhar também nesta luz. Entrar na casa dos barcos, beber um vinho, acariciar um gato, colocar um chapéu de palha, ou deixar crescer barba e bigode. Não, melhor,um ramalhete de papoulas no cabelo.