sexta-feira, 6 de julho de 2012

Noite de teatro: O mercador de Veneza no festival de Almada



"SALARINO - Ora, tenho certeza de que se ele não  resgatar a dívida  no prazo certo, não haverás de tirar-lhe a carne, pois não? Para que te serviria ela?
SHYLOCK - Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para alimentar a minha vingança. Ele humilhou-me, impediu-me de ganhar meio milhão, riu dos meus prejuízos, zombou dos meus lucros, escarneceu da minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo
com o exemplo do cristão? Ora, vingança. "
Shakespeare, O mercador de Veneza.

São nove horas e o átrio do teatro de Almada está repleto de vozes. Filas de pessoas ainda à espera de um bilhete que não há, tornam o espaço apertado. A peça a exibir daqui a pouco é "O mercador de Veneza" numa encenação de Ricardo Pais,  levada à cena uns meses antes no Porto. Nós os mouros ainda não a vimos por terras do Sul mas o festival de Teatro de Almada trouxe-a. Ricardo Pais é um bom encenador, arrisca, esta é a sua última encenação à frente do Teatro de S. João. O texto é Shakespeare. Há também  Albano Jerónimo a representar António e  João Reis, Shylock. Os ingredientes são mais que suficientes para elevar as expectativas. Quando começamos a ouvir o som de uma espécie de tubos de ferro suspensos do tecto ao bater levemente uns contra os outros e o palco cheio de sombras, as expectativas tornam-se mesmo muito altas. À aproximação dos actores/personagens surge a primeira impressão. Fatal a primeira impressão numa peça de teatro de Shakespeare, está nos actores: falta-lhes solidez, força, são frágeis e imaturos os seus corpos, mais concretamente a forma como se movimentam no espaço. O teatro ainda não lhes corre nas veias. O exemplo mais gritante é a beleza de Albano Jerónimo, perfeito, alto, lânguido, mas de voz incaracterística e má dicção, do poético texto da abertura fica-nos um amontoado de sons, uma falta de sentido que permanecerá rondando a sua personagem, como ave agoirenta, não percebo, nada me transmite senão cansaço. Salvar-se-á este encontro com João Reis, o único atravessado pelo Teatro, o único à altura do texto. Nenhum actor, por melhor que seja, pode brilhar sozinho, a falta de contracena amarfanha a sua tragédia e é pena, com actores à sua altura veríamos outro "Mercador". Daquele bando de jovens mancebos bem vestidos resta-nos a beleza da roupa e dos efeitos cénicos :aí o Ricardo Pais é bom, diria que é o melhor. Ainda de leve a ideia central do texto: A tragédia de uns será sempre a comédia dos outros. E não vou escrever mais  porque já vai longo este texto.


2 comentários:

Helena disse...

Pena. Teria tudo para ser uma boa noite de teatro!

"a tragédia de uns será sempre a comédia de outros" Verdade. Tal como a inversa!

via disse...

Helena: foi uma razoável noite de teatro apesar dos actores, o texto compensa a trivialidade do tom. a inversa também que seria da luz sem sombra?