
Morreu José Saramago, morreu o homem mas a sua obra agora talvez seja apreciada de outro modo. A obra de um escritor, os livros escritos e por nós lidos, ganham mais autonomia depois da morte do seu autor, apreciarei melhor a sua obra depois da sua morte, sinto já que relê-lo é o meu tributo ao escritor que admirava pela coragem e pela lucidez. A familiaridade com um autor que, de algum modo, é um amigo, como nós, capaz das maiores fragilidades, parvoíces e grandezas, aproxima a escrita de uma certa vulgaridade, retira-lhe a distanciação e a neutralidade necessárias para uma apreciação livre. Um autor engrandecido por prémios e pela divulgação impar da língua portuguesa, pressiona a leitura, distorce-a, talvez ao lê-lo queiramos ver tudo aquilo que o tornou grande,presos de um certo ressentimento face a outros escritores amados que não obtiveram nenhum desses reconhecimentos. Os criadores laureados são, de algum modo, homens do sistema e, como tal, afastados do mito do escritor maldito ou incompreendido, esse pormenor/ garantia da verdadeira obra de arte estar sempre além do seu tempo, a morte do autor reconcilia-nos com a sua obra, afasta o ressentimento associado ao homem. Voltar a ler Saramago sem essa pressão é libertador e obrigatório.
Reconheço o seu valor de homem público, a sua luta, a responsabilidade cultural que sempre abraçou com seriedade e generosidade, reconheço o seu valor enquanto homem de crenças profundas, enquanto desmistificador do ofício de escritor, um escritor é um trabalhador, não um artista: "Estas paredes foram pagas com palavras" dizia, ao falar da sua casa de Lançarote. Agradeço-lhe a obra que legou a Portugal e a sua coragem de nunca fazer o que se esperava dele, "Seguir em frente" era o seu lema. Também lhe agradeço esse exemplo de liberdade.