quarta-feira, 16 de junho de 2010

Alfama

Alfama aprumou-se, das casas velhas a cair, das ruas sujas a cheirar a peixe e das tascas sombrias há apenas a lembrança. pintam-se as casas para o turista, as tascas viram restaurantes com esplanada e até se aprende umas coisitas de inglês. como o turista ama o pitoresco, um dia destes, em prol da causa, recriam-se as ruas nos anos 50 com varinas de canasta à cabeça, pregões, vizinhas a discutir de janela a janela, fado ao desafio pela noite fora. Compreende-se o saudosismo, as cidades estão cada vez mais impessoais, Hi-tech, marasmo de vidro e mobliário clean, gente a passar cheia de pressa. Se houvesse um beco parado no tempo onde pudessemos ver carvoarias e homens sentados num banquinho a jogar às cartas, melhor, para apaziguar a consciência, afinal ainda há gente, pensaríamos, e tudo voltaria à normalidade. O saudosismo responde ao medo do desconhecido, não sabemos como irá ser, agora que tudo se modificou, ansiamos pelo que foi, aí sim estaríamos seguros. Os portugueses dão-se bem com este sentimento, a saudade, há quem diga que inventámos a palavra, não me lembro de saudade em francês, ou mesmo a "soledad" espanhola, não tem o mesmo significado.
"Sódade" canta a Cesária com os pés calejados, balançando no seu tom triste, "Sódade da m'nha terra S. Nicolau.". A saudade dá-nos esta mania de olhar as coisas na perda, de penetrar docemente na dissolução, sem revolta, abrindo os braços à fatalidade. Não há outro sítio como Alfama para encontrar esta saudade e não é só a presença do fado, do fado que foi, porque o fado tem esta estranha forma de comemorar a sua ausência, de celebrar antecipadamente a sua morte, são também as casas, as escadinhas, a banca dos mangericos, os becos improvisados, os pormenores de arcos e balões soltando-se esfiapados ao vento. Na decência composta desta Alfama turística, adivinhamos a dissolução das velhas almas, escorregando mansas para a sombra e a embriaguês, enquanto alguém , contra sua vontade ,as engalana para a festa.

Fotografia daqui

7 comentários:

S disse...

Saudade sempre foi a minha palavra preferida... isto agora fez-me lembrar que tenho um desafio para responder...
;)

Rui disse...

Parte de Alfama apenas tem saudades do futuro. E eu, tenho saudades de Alfama.

R. disse...

Mas este saudosismo é bonito. Destaca a beleza de um bairro e de uma cultura feita de gente. Por certo continuamente renovados, mas nem por isso esquecidos. Talvez seja essa a vantagem da saudade: impedir o esquecimento do que de melhor já foi.
Abraço!

via disse...

ss: é engraçado também gosto de saudade mas nem por isso de saudosismo. é verdade...mas não é nenhuma obrigação, se te apetecer.

Rui:Pois se tens saudades dela, visita-a, ela espera por ti.

R: ter saudades da Alfama do passado é bonito, mas ter aquele sentimento de que bom é o passado, o saudosismo, aí já me parece um pouco forçado. Alfama vive do que foi, é verdade, e isso é ternurento mas triste.Abraço.

S* disse...

Gosto dos bairros típicos e da tranquilidade que transmitem.

S disse...

Estou de acordo contigo, também não sou nada saudosista, mas a palavra saudade tem algo de poético que eu, apesar de ser uma pessoa muito prática, me seduz.

M Teresa Góis disse...

Corri e vivi Alfama nos anos 60. Era toda Alfama; as ruelas, as vizinhas, as roupas, os cheiros, a cumplicidade das pessoas, as tascas, o cheiro aos jaquinzinhos....Era parte do meu sangue "alfacinha" que ali corria também. Plantada agora na Madeira, com o Atlântico de permeio, estou feliz por ter vivido essa Alfama, autêntica, genuinamente portuguesa, em que os "camones" eram passantes e nós, os amantes.