segunda-feira, 5 de julho de 2010

tudo o que é sólido: o mármore, o granito, as linhas verticais. tudo o que é fluído: as disposições, os sentimentos, as convicções, o tempo desgasta e anima. tem assim, o tempo, duas tarefas para diminuir as diferenças: tornar o sólido, fluido e o fluido, irremediável. ao almoço, domingo, no centro comercial, um ensurdecedor ruído de fundo, dois velhotes comem sem dizer nada. ele, cabelo ralo, colado com brilhantina ou suor, vermelho, ela míope com os seus braços largos, flácidos, sobre a mesa, leva o garfo à boca. ele acaba um arroz de marisco aguado, levanta-se e vai embora. ela fica a olhar em frente, a maleta a tiracolo "se ficarmos em casa estamos sozinhos, assim vemos gente" diz, ansiosa por conversa. "ele faz sempre isto" "levanta-se e vai para casa, daqui a um bocado volta para me vir buscar" "para que casei eu? estou tão sozinha como quando era solteira!" Ao fim da tarde, no meio da avenida, dois jovens abraçam-se e beijam-se furiosamente. entre eles há apenas os anos, só o tempo, nada de sólido.
fotografia de August Sander

15 comentários:

b disse...

Solidão é estado - o único e independe da história pessoal das pessoas.
Observemos.

Rosa dos Ventos disse...

Triste e melancólico!
A paixão todos os dias cansa!

Abraço

Unknown disse...

Olá Via

Eis uma excelente narrativa sobre a gestão dos afectos.

Há um problema excelentemente colocado:
Que expectativas foram criadas quando o casal de idosos se juntou; que expectativas o jovem casal está a construir para se manter unido?

No casal de idosos, já os fulgores físicos e os emocionais terão sido resolvidos. O tédio e a rotina esmaga-os.
Entender-se-ão mal mas já será tarde, demasiado tarde, para se separarem.
Os jovens, andarão a esgotar-se fisicamente para depois, já apaziguados, poderem com a melhor lucidez, definir o seu padrão e construir a sua base de entendeimento.

Belíssimo texto.

Pelo-me por edições desta natureza.

Beijinho.

R. disse...

Talvez, via... Há tempos um colega meu dizia na rádio que apenas 5% dos casais formam um par verdadeiramente harmonioso. Talvez isso mude paulatinamente com o decréscimo do "conformismo" relacional. Talvez esses jovens sejam felizardos e venham a integrar a exígua estatística. Talvez o amor seja uma lotaria e o convívio a dois seja uma opção...
Abraço e boa semana :) E parabéns, uma vez mais, por este outro momento belissimamente "recolhido".

via disse...

b: esta perspectiva é terrível mas verdadeira. lúcida mas dolorosa.

Rosa dos Ventos: cansará...mas penso que ela, a paixão, não se dá bem com o tempo, para ela não existem dias porque os devora ao pequeno almoço...eheheh abraço

JPD: Talvez sejam os velhotes esses jovens da avenida há 50 anos e os jovens os velhotes depois de 50 anos. a expectativa é sempre alta mas por vezes pensamos que o milagre pode acontecer no dia seguinte, em geral não queremos olhar de frente para o que temos e depois é demasiado tarde para mudar. poderiam estes jovens aprender com os velhotes? não querem, preferem nem os ver, cada um pensa que pode aprender tudo sozinho e não é assim as emoções humanas não mudam com o tempo, nem as expectativas, poderemos aprender isso compreendendo os velhotes e depois evitar cometer os mesmos erros. maybe. obrigada JPD pelas tuas simpáticas palavras.bjo

R: também penso isso, a percentagem deve ser mínima a adivinhar pelos casos que nos passam diante, mas há sempre a possibilidade de ser alargada, a tal de felicidade parece-me cada vez mais com um gesto de compromisso e de vontade, não apenas emoções. continuo a pensar que viver a dois é preferível, mas em certas condições, claro.obrigada R. porque és uma querida.

Ana Paula Sena disse...

Uma foto fantástica que adorei!

...e o teu texto, pelo qual captas a vida real que convive connosco lado a lado, todos os dias. É bom saber que há alguém capaz de tão bem a observar.

Beijo :)

R. disse...

Obrigada, via. Mas é como diz um dos nosso "grandes": 'é a vontade que me dá do que (tu) fazes' :) E, de facto, era ao que me referia quando dizia que o convívio a dois é uma opção. Acredito que a partir de determinada altura é preciso que se torne deliberadamente numa escolha, para que, como dizia um outro "gigante", "de tudo ao meu amor serei atento/ antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ que mesmo em face de maior encanto/ dele se encante mais meu pensamento"...
(Está visto: hoje deu-me para as citações e para a lamechice... foi o que pôde arranjar ;) )

CCF disse...

Essas mulheres Via, não sabiam que podiam deixar os maridos, nem tinham poder para isso (eram dependentes deles económicamente). Era toda uma sociedade que valorizava apenas a mulher casada. Hoje não mudou tudo, mas mudou alguma coisa. E podemos amar mais do que uma vez.
~CC~

via disse...

Ana Paula Sena: Este fotógrafo alemão tem fotografias muito boas. Obrigada, os velhotes estão ao nosso lado, muitos, todo o tempo, alguns têm muitas histórias para nos contar, boas histórias. Já de férias? Bjo

R: Um dos “grandes” sei quem é, este poema é uma tentação, merece lugar na primeira fila, ainda bem que o lembraste “Soneto da fidelidade” do Vinicius, a Bethânia di-lo muito bem e é perfeito, nada se pode dizer mais, perfeito. Não resisto à tentação de o colocar no post seguinte. Espero que me digas quem é o outro “grande”. Sim, uma escolha, uma determinação. Venha, toda esta lamechice, adoro.

CCF: Sim, pode-se amar muitas vezes, claro. Mas penso que esta geração de mulheres estava muito ocupada com filhos e não tinha condições para viver por si, daí, aguentarem.

R. disse...

O Sérgio Godinho, na canção "as certezas do meu mais brilhante amor". Como sempre, uma letra magistral. O soneto é, realmente, e absolutamente, perfeito :)

via disse...

R: Sim, fui ver, transcrevo:Não negarei ficar assim nesta beleza
Assobiando as melodias mais fugazes
Não é possível nem é simples, concerteza
Mas é vontade que me dá do que me fazes.
obrigada.

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