domingo, 20 de novembro de 2011

post doc

caminhar pelas ruas de lisboa, as velhas ruas dos velhos bairros de janelas estreitas, caliça desmaiada e opaca, calçada irregular, portas fechadas com batentes, degraus. Pergunto-me o que vejo, o que é ver, se nesse acto de me comprazer com as linhas, volumes, cores e tons, não há também passado, um passado de histórias e sobressaltos, frases ditas, no acto de ver as botas a subir o lancil de um passeio distraídas pernas, frases cruzadas, no calor de uma conversa, ou ar fresco depois de uma noite de chuva limpando a poeira da cor, gritando-a suavemente sobre a tarde, a emoção do corpo, onde há também pensar, a estranha presença do corpo, desta rua, do meu corpo dentro e fora dela, desprendendo as redes com que teço a atenção, penetrando dedos húmidos no olhar como um felino rombo, um feroz servidor de cálices, baixando os olhos, vendo por dentro, compondo a fugacidade para a desviar do lugar onde não a podemos usar, uma e outra vez, desmaiá-la, desdobrá-la, arrepiar-se nela. se somos nas coisas ou elas em nós, se nesse momento em que sentimos, só nesse ainda e sem nome, instante, vemos. A dificuldade de separar, traduzir escolher palavras é ainda ver, de uma outra maneira. A memória do discurso quando ele se estende à nossa frente, muito à frente do que sentimos e se multiplica em inutilidades, como parágrafos e letras, conjugações e metáforas, eu dizia, caminhar (só) pelas ruas antigas de lisboa.




foto: Willy Ronis

4 comentários:

S disse...

Exercício que faço com alguma frequência. Nesta Lisboa que sinto abandonada e a envelhecer a passos largos.

via disse...

ss: envelhece sem dúvida e isso tem tanto de belo como de trágico.

R. disse...

caminhar, alternando entre a distância da despersonalização (em que a visão de nós e do que nos rodeia parece feita por um outro externo e alheio ao próprio) e a proximidade do puramente sensorial (feito de cheiros, cores, sons e sensações intensamente vívidas).

(os teus textos são cada vez melhores e mais "impressivos". Surpreendente!)

via disse...

R: ver e ver-se a ver e ainda ver para escrever sobre o que se vê e sobre o que é ver. complicadinho. obrigada.