quinta-feira, 4 de março de 2010

Alfarrabista

chovia copiosamente quando entrei no alfarrabista da Poço dos Negros, toda a rua em declive, estreita e escorregadia exigia uma atenção e uma arte para não pôr o pé em falso e desabar no chão, foi a olhar para ele que abri a porta com a tabuleta ABERTO escrita a computador em folha A4. Lá dentro a luz acesa e o cheiro, aquele cheiro a livros velhos que sempre me há-de tirar do sério e estampar-me um sorriso imbecil e sonhador no rosto, aquele cheiro para onde mudaria a traquitana da vida, em peso, e a arrumaria ao acaso entre os volumes simétricos, nas estantes a perder de vista, o Borges tinha razão: cada biblioteca é um labirinto infinito e cada livro uma chave e uma perdição para outros labirintos. O velhote escondido atrás do balcão tinha o ar calmo e solícito de um alfarrabista antigo, homem de livros, sim, tinha, foi procurar, temos 20.000 títulos, ao fim de algum tempo lá me apresentou os Irmãos Karamazov e a obra completa do Dostoievski. A edição era dos Estúdios Cor, num só volume de folhas amarelecidas. Exultei, era mesmo isso que procurava. A chuva, é preciso ter cuidado, disse, enrolou então o livro em dois sacos plásticos enquanto me fazia à conversa, para prolongar um pouco mais o momento, o momento do dia, pensei. Cá fora a chuva continuava, pus o livro na mala e não me preocupei mais com a calçada escorregadia.

8 comentários:

Apple disse...

Gosto imenso de ir aos alfarrabistas.
Amo livros, são os mais fiéis amantes.
Dostoievski foi a minha primeira paixão impossivel.

Belo texto. Obrigada por me relembrares que há demasiado tempo não passeio entre o cheiro dos livros antigos.

S disse...

Fico a 'salivar' só de pensar em alfarrabistas e livros...

R. disse...

Duas escolhas preciosas: a do livro e a do local. E, já agora, a fotografia é belíssima também. Obrigada por tão afável partilha.

Rui disse...

sei a história de um alfarrabista e um dia conto-a. mas, sendo os livros uma coisa muito minha, os alfarrabistas nunca conseguiram ser, não sei porquê. as byblos também não. o que melhor vai comigo, é mesmo aquela coisa das barracas na rua.

via disse...

Apple:Dostoievski foi também e é uma paixão, lembro-me de que quando lia O Idiota, ia a caminho de Paris, de comboio, e embora o ambiente fosse amalucado eu só via as letrinhas e andava para cá e para lá entre os corredores apinhados de gente a dormir encostados uns aos outros e eu com aquele calhamasso na mão à procura de sítio para encostar porque lembro-me que se nos levantassemos para ir à casa de banho,perdíamos imediatamente o lugar, ora estar dois dias sem ir à casa de banho era impossível! fiéis, sim, inesquecíveis.

ss: Então, bem-vinda ao Clube!

R: A fotografia encontrei-a na net, pareceu-me, entre as várias que vi, a mais semelhante ao sítio onde estive e também à luz desse dia, mas não é da Rua Poço dos Negros. será de um outro sítio, parece-me em Lisboa e parece-me na Rua do Alecrim mas é só uma suposição. Tem um bom fim-de-semana.

Rui: e aqueles alfarrabistas nas margens do Sena? também se fazia uma feira de livros antigos, com bancas ao domingo por debaixo das arcadas da Praça do Comércio mas não sei se ainda fazem.

Unknown disse...

Quem me dera a mim, Via,poder dispor de uma biblioteca que, ao menos fosse de 5 a 10 mil livros.
Quem me dera.

Brevemente terei de fazer o tirocíno dos alfarrabistas.
A Dom Quixote deixou esgotar (Informação telefónica) «A Pastoral Americana» do Philip Roth e eu ainda não consigui encontrá-la nas livrarias tradicionais.

Gosto de livros, leio e compro o que posso às vezes quase nos limites da compulsão.

Este alfarrabista que mencionas está a meio da Calçada do Combro, à esquerda, a descer para o Poço dos Negros?

O Borge é uma fonte inesgotavel de ideias. A que relatas é brilhante e só poderia ser dele.

Uma maravilha.

Saudações

via disse...

JPD: DEsces o Combro, quando entras na Poço dos Negros, nº19, é aí. Quanto à "Pastoral" não tenho, só indicar-te que na net, se colocares alfarrabistas, irão aparecer-te uma série deles, muitos com os títulos on-line e podes pesquisar por aí, é mais rápido (mas menos saboroso) que entrar em todas as livrarias.bjo

Ana Paula Sena disse...

Que maravilha, via!

Adorei o teu texto que testemunha esse momento precioso, vivido por ti.

Quase senti o cheiro dos livros antigos :)