sexta-feira, 29 de outubro de 2010

estado de coisas

a minha impressão espúria sobre o irreversível envelhecimento da Europa confirma-se no casal à minha frente. ele de pé envia um MSN, ela, sentada, com a criança ao colo. a criança, meio adormecida, vai engolindo o sumo que a mãe lhe dá e mastigando o hambúrguer devagar. São 10h30 da noite no centro comercial dos subúrbios. No amplo espaço do serviço de restaurantes, há ainda muitas mesas ocupadas apesar de ser um dia de semana, os écrans gigantes debitam a novela da SIC, Laços de sangue. A criança não quer mais hambúrguer e a mãe põe a criança no chão e o lixo no contentor. O casal deve rondar os 30. Ambos com ar estafado e tristonho, parecem estar há muito fora de casa. Daqui a poucas horas terão de estar todos de pé, novamente, não serão muitas as horas de sono. Pergunto-me quem, no seu perfeito juízo, quererá ter filhos nesta situação de trabalho até à medula, sem horário definido, e com o espantalho da competição e do desemprego nos calcanhares? Quem quer ir buscar a criança ao infantário ao começo da noite ou, no melhor dos casos, fim da tarde, depois de saber que ela lá está há oito horas? Quem quer chegar a casa e fazer jantar, loiça e todos os dias o mesmo? Fim de semana, tratar da roupa, fazer compras. Quem quer uma merda de vida destas? Que sentido tem uma sociedade que não deixa espaço para a respiração familiar? Que não cuida do futuro? Depois admiram-se da Europa estar a envelhecer. Só pode.

5 comentários:

CCF disse...

Já tive uma vida dessas, já fiz parte um casal assim(ou mais ou menos). Morando nos arredores de Lisboa e trabalhando bem no centro, poucas horas sobravam para estar, amar, dormir. Lutei muito para a deixar e consegui. Viver na "província" deu-me uma segunda vida, e uma filha inteira, que muitas vezes vem almoçar a casa comigo. Tens tanta, tanta razão...Mas há quem crie filhos mesmo assim, sem se importar.
~CC~

Cassandra disse...

Eu não quero, Via. Assim não. Admiro quem ainda se aventura. É um baloiçar sobre um abismo sem rede. Talvez, se não tivessemos tanta consciência deste status quo de merda procriássemos mais. Assim não.

via disse...

CCF: Olha mas alguma coisa terá de mudar, ou as pessoas trabalham menos, ou deixam de querer ter tudo, ou o Estado dá um apoio.porque como as coisas estão possivelmente daqui a uns 20 anos há ainda menos crianças. A província parece-me uma boa ideia, para quem gosta de uma vida contemplativa.

Cassandra: olá miúda! é verdade parece-me em certas circunstâncias quase desumano.

R. disse...

A Europa envelhece e uma parte do mundo também, paradoxalmente sobrelotado. Não só de nada servem, como serão até contraproducentes as pseudo-políticas de incentivo à natalidade. A Europa demora a perceber que tem de se reinventar e não poderá fazê-lo apenas com europeus...

(Sempre atenta. Sempre pertinente, via).

via disse...

R: é verdade que o mundo esá sobrelotado e mais crianças contribuem ainda mais para esse estado, mas a sustentabilidade da Europa a médio prazo também depende disso, contar apenas com os emigrantes, é arriscado, porque alguns não Vêm para ficar.reenvio a simpatia final. eheh